O Século XX do Desporto

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1924 – Jogos Olímpicos de Paris
Nurmi, o homem das cinco medalhas

Para além da humanidade
De Paavo Nurmi, para além do fulgor com que conquistava mundos e fundos, pouco se sabia. Mas sabia-se que a sua alma vivia na eterna esperança de ter dentro de si espírito de condor, o que, contudo, não o impedia de estar, antes das provas, em longas preces. Conta-se que, por exemplo, nos 55 minutos que separaram os 1500 dos 5000 metros nos Jogos de Paris se escondeu num recanto do balneário para rezar e na véspera orara noite dentro, na capelinha da Cidade Olímpica, durante duas horas. Também se revela que vivia para lá da humanidade. Frio, reservado, pessimista, fanático. Um dia falaram-lhe nisso, reconheceu que sim — que era fanático da perfeição e da glória. E fechou o rosto — o seu estado normal. Pouco comunicativo, fugia aos fotógrafos e aos jornalistas como o Diabo da cruz, vivendo até alheado dos próprios companheiros de selecção — e, ao contrário de muitos outros deuses dos estádios, nunca se lhe viu um gesto de felicitação, de complacência ou de incentivo pelos vencidos. Timidez? Talvez. Temor? Nem por sombras. A correr não havia medo que lhe coalhasse o peito, o que sentia era quase desprezo pelos adversários, disso fazendo a chama do seu brilho, a lava do vulcão em que se tornava pista fora. Terminadas as provas tirava os sapatos, vestia os seus abafos e dirigia-se, mordiscando os lábios, de olhos metidos no chão, para os balneários, sempre sisudo, sempre indiferente a saudações, aplausos, vibrações.

Indeclinável ritual
Chamaram-lhe finlandês voador. Fantasma com asas. Inigualável Paavo. Após as cinco medalhas de ouro que conquistou nos Jogos Olímpicos de Paris, fizeram-se na Finlândia 42 banquetes de homenagem aos heróis das pistas. A todos eles Nurmi foi no seu jeito glacial, de sorriso escondido — o inverso de Hannes Kolehmainen, que ria, ria, ria... E nunca deixou de cumprir indeclinável ritual: por mais sumptuosos que fossem os repastos, depois do café dirigia-se discretamente aos lavabos, trocava de roupa, vestia fato de treino, calçava as sapatilhas, depositava o fato de gala no automóvel do treinador e... corria durante uma hora, nada se incomodando com o estômago cheio. Aliás, pouco cheio estava porque dizem as crónicas que apenas petiscava como um passarinho.
 
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1924 – Jogos Olímpicos de Paris
«Finlandês voador» e a justificação do sucesso

Pobre, sem cafés..
A atmosfera de mistério que Paavo Nurmi murou em torno de si, sendo por uns classificado de misantropo e indiferente, por outros de egocêntrico e petulante, era uma das suas imagens de marca. Pelos dedos de uma mão se contam as entrevistas que deu ao longo de toda a vida. Numa delas justificou o sucesso dos fundistas finlandeses nos loucos anos 20. O Sport de Lisboa transcreveu o trecho — que diz tudo: «Conseguimos isso porque somos um povo frio e triste... E também porque somos pobres... No nosso país há poucas aglomerações e no campo as granjas estão muito distantes umas das outras. O mesmo sucede nos centros industriais. Por isso mesmo os rapazes quando terminam o trabalho saem à estrada, único ponto de reunião, e correm ou saltam para se distraírem e procurarem uma natural reacção depois das horas de imobilidade a uma temperatura glacial. Se fôssemos ricos em vez de pobres o nosso país seria invadido pelos cafés e cinematógrafos, onde os nossos jovens passariam as horas livres, perdendo não só a força dos músculos mas também a da vontade, a do espírito...»
 
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1924 – Jogos Olímpicos de Paris
Suecos abriram campanha quase rábida para excomungar Paavo Nurmi

Engenheiro ou profissional?
Quando, durante a década de 20, rasgando amarras dentro de si, soltando músculos, libertando asas, Nurmi transformava as pistas em campos de terror para os adversários os finlandeses juravam que era estudante de engenharia, os suecos descriam, acusavam-no de profissionalismo dissimulado, exigiam as sua excomunhão do movimento olímpico. Provas (?) da violação do código do amadorismo apareceram apenas em 1932. Por isso não lhe foi permitido correr a maratona nos Jogos Olímpicos de Los Angeles, onde decidira colocar ponto final na carreira. Prometendo mais uma medalha de ouro. A federação finlandesa não reconheceu o crime, manteve-se em actividade local até 1934. Era um deus — a mais popular figura da Finlândia fosse em que área fosse.

Fogo sagrado nas mãos
Segredo absoluto em torno dos últimos nomes da estafeta da tocha olímpica nos Jogos Olímpicos de Helsínquia, em 1952. Mas quando, depois de receber o facho das mãos de Hannes Kolehmainen, Paavo Nurmi entrou no estádio 80 mil espectadores, numa onda de histeria como nunca se vira num campo desportivo, gritavam o seu nome, por entre o estrugir das palmas — e aqueles minutos até que o fogo sagrado se acendesse na pira foram indescritíveis. Era o efeito de Nurmi nos corações de todos. Avassalador. Sem surpresa, quando morreu a 23 de Outubro de 1973, com 76 anos, a Finlândia afundou-se num luto carregado, o funeral teve honras de estado, vários dias estiveram as bandeiras a meia haste.

Estátua para Washington
Após a fabulosa epopeia em Paris o governo da Finlândia encomendou ao escultor Wäinö Aaltonen estátua de bronze de Paavo Nurmi à escala real. Um ano depois foi colocada em Turku, cidade onde nasceu. Para celebração do 80.º aniversário da independência da Finlândia, em 1997, a obra de arte foi colocada na embaixada em Washington como um dos objectos mais sagrados que a nação tinha para mostrar ao mundo.
 
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1924 – Jogos Olímpicos de Paris
Primeira grande digressão americana de um atleta europeu

Nurmi com medo de correr no barco
A fama de Paavo Nurmi alastrou e cruzou o mundo como um astro a refulgir. Os ecos da epopeia em Antuérpia e Paris, as crónicas da sua resistência fantástica e da sua velocidade felina, estremeceram os americanos. Que o quiseram lá. Para o ver de corpo e alma — o herói do olhar frio de aço, do fôlego aparentemente inesgotável. A primeira tentativa fora em Novembro de 1922. Debalde. Preferiu continuar os estudos na Escola Industrial de Helsínquia — e preparar-se afanosamente para os Jogos Olímpicos de 1924. A aposta deu... taluda, porque as cinco medalhas de ouro então conquistadas subiram-lhe o prestígio no mercado — e mesmo por baixo da mesa os dólares correram em torrente. Para os Estados Unidos partiu em Novembro de 1924, fazendo-se acompanhar pelo leal massagista Eino Hakoniemi. À chegada poucas palavras — e as que foram ribombaram em queixa das más condições de treino a bordo do navio chamado Celtic. Mesmo assim treinou-se todos os dias. Ou melhor, todas as noites, sob lúgubres luzinhas — quando os outros passageiros já dormiam ou se entretinham em pândegas —, por sentir vergonha de andar naquele ambiente às voltas pelo convés, em correrias de pelo menos uma hora. À chegada a Nova Iorque tinha à sua espera no cais centenas de finlandeses e americanos e uma limusina que o transportou até ao palacete da câmara, onde o mayor Hylan lhe entregou as chaves da cidade. Recusou as mordomias de um hotel de luxo, preferiu hospedar-se no Bronx em casa de Hugo Qvist, seu amigo e conselheiro técnico que se radicara por lá, os jornalistas descobriram-no, refugiou-se então em lugar que nunca ninguém descobriria. A 6 de Janeiro a primeira exibição, no Madison Square Garden, em pista de 160 jardas. O ar do pavilhão saturado pelo fumo do tabaco, o desafio de duas corridas no espaço de uma hora: milha e légua. Ambas ganhou e em ambas bateu os recordes mundiais de pista coberta: 4.13,5 minutos nos 1604 metros e 14.44,6 nos 5000. E isso foi apenas o início de uma fabulosa digressão. Com recordes mundiais em catadupa — e milhares de dólares também, só que em segredo. Por causa do mito cada vez mais hipócrita do amadorismo a la Coubertin.

50 mil quilómetros, duas derrotas
Paavo Nurmi não se ficou por Nova Iorque. Foi de costa a costa, de Bóston a São Francisco — ainda deu um saltinho ao Canadá. Em quatro meses 50 mil quilómetros percorridos de automóvel e comboio, 55 corridas e apenas duas derrotas, devido a súbitas indisposições gastrointestinais! Doze recordes mundiais de pista coberta e mais doze ao ar livre. E sempre o feitio contorcido, o jeito de bichinho do mato, sem uma única entrevista dada aos americanos, que lhe suplicavam cinco minutos que fosse. Sempre não, sempre não. Espanta, portanto, que, numa época em que tudo era mediatizado e frenético — o jazz e o charleston estavam em fase de explosão —, o tour americano de Nurmi tivesse o impacte que teve, a ponto de, entre Janeiro e Março de 1925, só o New York Times ter publicado 70 artigos sobre o finlandês que raramente sorria — e até o presidente Calvin Coolidge fez questão de o conhecer, convidando-o para recepção de honra nos jardins da Casa Branca.

Ville Ritola ganhou quatro medalhas de ouro e duas de prata

De colete-de-forças para hospital de loucos
Paavo Nurmi foi a estrela maior de Paris. Com as suas cinco medalhas de ouro ofuscou Johnny Weissmuller, Harold Abrahams, Eric Lidell e... Ville Ritola. Seis semanas antes da abertura dos Jogos Ritola usurpara o recorde mundial da dupla légua a Nurmi. Por isso os técnicos nacionais preparam a corrida para si, o que desgostou Paavo que, debaixo de um calor tórrido, 45 graus, um forno autêntico, não entrou em pista e deixou caminho totalmente livre ao compatriota, que bateu o sueco Edwin Wide por mais de meio minuto (!). Nos 3000 metros obstáculos mais uma medalha de ouro. E outras duas colectivamente nos 3000 e no crosse — para juntar à prata nos 5000 e no corta-mato. Para além do recorde do Mundo, Ritola tornara-se famoso alguns meses antes devido a uma inacreditável prisão! Andava a treinar-se por montes e vales no interior da Finlândia, vindo dos Estados Unidos, para onde emigrara pequenino, quando um batalhão de polícia se precipitou sobre si, neutralizou-o, colocando-o num colete-de-forças, para o levarem para o hospital de loucos da cidadezinha. Julgara quem o vira que fugira de lá. Só quando os médicos concluíram que não, que era apenas um corredor que emigrara para a América, que de louco tinha pouco ou nada, é que o soltaram.

Angústia da barreira tocada
O italiano Ugo Frigerio ganhou os 10 quilómetros marcha, juntando mais uma às duas medalhas de ouro que arrecadara em Antuérpia. Douglas Lowe venceu os 800 metros — e o único campeão olímpico do atletismo (sem contar com a marcha) que não era britânico nem finlandês nem americano foi o australiano Anthony Winter, que ganhou o triplo salto com 15,525 metros, recorde mundial. O domínio americano centrou-se quase em exclusivo nos saltos, nos lançamentos, nas estafetas e nas barreiras. Dan Kinsey venceu os 110 metros barreiras em 15,0 segundos — e Morgan Taylor os 400 metros em 52,6 segundos, o recorde mundial não foi homologado porque tocou ao de leve na última barreira e ela caíra, o que então era considerado ilegal. Ironia do destino — uma das habilidades com que Taylor gostava de encantar os amigos era equilibrar uma moeda na barreira para deitar ao chão com o pé de passagem. Garante que fez isso milhares e milhares de vezes. Mas naquele dia, sem moeda, a barreira caiu e o recorde perdeu-se.
 
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1924 – Jogos Olímpicos de Paris
Vergonhas que levaram alguns críticos a anunciarem a morte dos jogos olímpicos

Roubar bandeira e deixá-la em pedaços
Foi o escândalo mais cortante, mais lamentável. Entre outros. Alguns dias depois de ter corrido cortina sobre os Jogos Olímpicos de Paris o barão de Coubertin, o conde de Baillet-Latour, o marquês de Polignac e o general Kentish assinaram um comunicado do COI onde se lia: «É-nos muito doloroso comprovar e ter de tornar públicos factos tão vergonhosos como os roubos das bandeiras do estádio, roubos premeditados e organizados por alguns atletas, com o fim de levarem recordações dos Jogos. A grande bandeira olímpica, de 10 metros, foi arrancada do mastro e despedaçada, para separar dela o centro onde estavam bordados os anéis. Os farrapos dessa bandeira ficaram dispersos pelo campo...» Na final do pólo aquático levantou-se uma onda de contestação antiamericana, várias outras foram as questiúnculas, as cenas de violência extrema, no boxe, na esgrima, no râguebi — o que levou o Times a lançar editorial com título cruciante: «Jogos Olímpicos mortos!» «Paris foi um misto de turbulência, desordem vergonhosa, abusos, lutas livres, o enlamear dos hinos nacionais — e uma hostilidade contínua e estúpida contra os americanos...» Félix Bermudez, um dos fundadores do Benfica, intelectual de renome que em Paris esteve em competição no... tiro, não deixou, algum tempo depois, de colocar a questão no eixo central, escrevendo no Sport de Lisboa, que passara a dirigir, no regresso dos Jogos: «Embora tudo quanto ficou relatado seja realmente grave e lamentável, parece-nos exagero demasiado propor a supressão dos Jogos Olímpicos. É verdade que quando se tem um dente cariado a boa higiene aconselha a que se tire o dente e quando um calo nos martiriza um pé a comodidade nos leva a cortar o calo. Mas por ter uma dor de cabeça ninguém vai... cortar a cabeça. E, se fosse lógico suprimir os Jogos Olímpicos porque em Paris se cometeram imoralidades, teríamos de acabar com o futebol porque nalguns desafios se têm praticado selvajarias, proibir-se-ia a luta greco-romana porque um lutador quis um dia estrangular outro... Ante argumentos de igual solidez, como há médicos assassinos... acabava-se com a medicina! Porque aparece às vezes o pão falsificado proibia-se o fabrico do pão! E, pelo facto de haver jornalistas que dizem tolices, não se permitiria a publicação de nenhum jornal!» Num tom muito menos empolgado, Pierre de Coubertin também aspergiu água para a fervura, alertando para o facto de... «50 vadios na multidão serem suficientes para causar distúrbios em qualquer manifestação desportiva» — e, desdramatizando, afiançou: «Não faz sentido falar na morte dos Jogos, houve coisas lamentáveis, é preciso cortar-lhes as raízes, mas, sinceramente, já estou a sonhar com as XXVI e XVIII Olímpiadas nos anos de 1996 e 2004»! Após Paris o barão cumpriu a promessa de se reformar de presidente do COI. Assim foi. Mas membro do comité se manteve até 1937, quando, com 74 anos, morreu em Lausana, onde vivera desde 1915 — pedindo apenas que lhe levassem o coração embalsamado para um monumento de mármore que haveria de construir-se com esse intento em Olímpia, no Bosque Sagrado.

Fim do monopólio dos americanos... irlandeses
O americano Fred Tootell rompeu o monopólio de vencedores do martelo nascidos na Irlanda mas competindo sob bandeira dos Estados Unidos. De qualquer modo, Matt McGrath, o segundo, também emigrara da Irlanda para a América, como Flanagan ou Ryan. O finlandês Jonni Myyra repetiu a vitória de Antuérpia no dardo. E o seu conterrâneo Eero Lehtonen ganhou o último pentatlo que se fez nos Jogos Olímpicos.

Primeiro negro com asas de ouro
No pentatlo o americano Robert LeGendre ganhou a medalha de bronze mas, com 7,765 metros, entrou para a história ao bater o record mundial do salto em comprimento, acrescentando-lhe 7,65 centímetros — vingando-se assim dos técnicos que o impediram de competir nessa especialidade, ganha por William Hubbard, primeiro negro campeão olímpico. No salto à vara ouro para o americano Lee Barnes, apenas 17 anos, com 3,95 metros.
 
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1924 – Jogos Olímpicos de Paris
Robin Reed compensou corpinho de 60 quilos com jeito especial

À boleia para Nova Iorque
Na luta livre a grande figura de Paris foi o americano Robin Reed, campeão de peso pluma. Não tinha sequer 60 quilos, começara a combater no liceu, ganhara fama ao integrar a equipa da Universidade de Oregão. Não sendo dotado de grande força física, procurou incessantemente aperfeiçoar os movimentos e técnica sui generis — que acabariam por torná-lo imbatível. Aos Jogos de 1924 chegou com 24 anos, conquistou o ouro mobilizando todos os concorrentes que lhe surgiram no tapete — graças a um estratagema que passava por um golpe que rematava colocando-se em cima dos oponentes, coisa então rara. Aliás, em Paris, para além da medalha, ganhou uma aposta choruda com Harry Steel, americano que venceu na categoria de pesos pesados — Reed garantiu-lhe que conseguia colocar-se cinco vezes sobre si no espaço de 15 minutos, apesar de entre eles haver mais de 50 quilos de diferença no peso! Conseguiu mesmo. Outro episódio insólito acontecera semanas antes — foi do Oregão para Nova Iorque à boleia, a fim de se juntar à selecção olímpica. Quando parou na Universidade de Iowa pediu ao treinador para o deixar treinar-se com os seus rapazes, disse-lhe que não, Robin retorquiu: «E se eu derrubar todos os seus homens deixa-me treinar?» O outro riu à gargalhada, ficou de boca aberta quando, alguns minutos depois, todos os lutadores da universidade tinham sido sucessivamente derrubados à porta do ginásio. Nesse momento houve logo quem garantisse que Robin só não seria campeão olímpico se lhe acontecesse algum cataclismo. Não aconteceu..
 
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1924 – Jogos Olímpicos de Paris
«Maravilha negra» do Uruguai

José Andrade
A final do torneio olímpico de futebol foi surpresa total. E o maior quinhão disso nem sequer foi lá estar o Uruguai. Foi a Suíça entrar na disputa do ouro. Ganharam os sul-americanos, com um futebol todo feito de magia, voltariam a sagrar-se campeões olímpicos quatro anos passados, em Amesterdão. Os governantes proibiram-nos de disputar uma tournée pela Europa para que a euforia não se esbatesse caso as coisas corressem mal — e secretamente distribuíram pelos jogadores as verbas que lhes competiriam no caso de não irem mais cedo para casa. À sua espera tinham o feito imortalizado numa colecção de selos — e um país inteiro a recebê-los como «heróis maiores da pátria». A estrela maior era José Leandro Andrade, cognominado maravilha negra. Médio-direito do Nacional de Montevideu, ganhou três edições da Copa América (1923, 24 e 26) — e já em ocaso o Mundial de 1930, que esteve por um fio: tinha 32 anos, sofreu lesão grave, com a garra com que jogava recuperou dela e na hora H lá estava.

Disco em rotação perfeita
O americano Harold Osborn venceu o salto em altura e o... decatlo. O seu compatriota Clarence Houser também arrecadou duas medalhas de ouro, no disco e no peso — e foi o primeiro discóbolo a lançar a técnica de rotação perfeita, sistema agora universal. Dobradinha no peso e no disco apenas Robert Garrett conseguira em toda a história olímpica e nunca mais outro lançador o conseguiria. Garrett foi campeão olímpico em Atenas-1896. Estudante da Universidade de Princetown, quando soube que Coubertin estava a idealizar Jogos Olímpicos imaginou de súbito que colocaria o disco no programa. Pediu a um amigo que lhe fizesse um engenho de aço puro e durante semanas treinou-se com ele. Quando chegou a Atenas descobriu que o disco para lançar era muito mais leve, com dois quilos apenas e aerodinâmico. E, sem exibir a elegância de arremesso dos gregos, ganhou-lhes a única prova que não queriam perder, por óbvias razões históricas. A força que deu aos músculos permitiu-lhe também ganhar o peso.
 
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1924 – F. C. Porto campeão de Portugal
Velez carneiro envolveu-se em rixa e foi baleado na cabeça
Futebolista assassinado à queima-roupa

A rua tinha o aspecto trágico de uma pobre nesga de cidade que não passava de um farrapo sujo e negro. Velez Carneiro, médio-centro do F. C. Porto, conversava com amigos junto de uma das portas do café Chave d\'Ouro. Dele se abeirou um homem de faces rosadas, que em sussurro lhe disse qualquer coisa ao ouvido. Velez disse aos amigos que o esperassem, descendo com o outro a Travessa dos Congregados. Sombras trágicas desenharam--se à beira de um velho lampião, os dois homens, no calor da altercação, engalfinharam-se um no outro... Pouco depois o futebolista era atingido na cabeça. Carmindo Ferreira Duarte, o assassino, escriturário principal do Minho e Douro, com uma frieza impressionante ergueu-se do corpo de Velez que definhara já, morto na rixa aquecida por ódios antigos, na calçada irregular e aventou: «Acabei de matar um atleta...» Um polícia à paisana assomou à ruela e, dando-lhe ordem de prisão, perguntou pela pistola: «Não sei... Atirei-a praí!» Velez Carneiro, que tinha 27 anos, começara a jogar no Sporting, aos 15 anos, ingressando no F. C. Porto em 1920, suspeitando-se de que fosse um dos primeiros jogadores semiprofissionais do clube, que, secretamente, lhe pagava casa e alimentação. O funeral foi imponentíssimo, incorporando-se no préstito, depois dos responsos, acompanhados a órgão, ao som da Marcha Fúnebre, da Constituição ao Cemitério de Paranhos, milhares de pessoas, chorando ao longo das ruas.
Portistas bateram Sporting graça ao guarda-redes que parecia o homem-borracha
Mecânico-dentista e penalidade bárbara
A final do Campeonato de Portugal da época de 1924/25 seria, por via da morte trágica de Velez Carneiro, marcada por profunda emotividade. Os portistas, num impressionante culto de energia, querer e sentimento, prometeram a si próprios ganhar para que o companheiro ganhasse também. E foi com essa tensão, fortes de vontade e de coração, que partiram para Viana do Castelo. Na baliza o F. C. Porto apresentava o húngaro Miguel Siska, que chegara à cidade como... mecânico-dentista mas, sabia-se, era o primeiro «grande profissional» do clube e de Portugal, «com ordenado como lá fora se pagava»! Acabou por ser o factor de desequilíbrio. Na crónica que publicou em O Sport de Lisboa Ricardo Ornelas sintetizou assim o jogo que valeu ao F. C. Porto o segundo título de campeão de Portugal: «A vitória portuense foi merecida porque o F. C. Porto jogou efectivamente melhor que o representante de Lisboa e porque, a par dessa superioridade técnica, lutou pela vitória com entusiasmo e com alma e demonstrou, a cada momento da partida, perfeita compenetração do encargo que lhe cabia pela representação da sua cidade. O Sporting, pelo contrário, jogou sem convicção. Saiu do campo vencido por factos que devia desprezar ou esquecer. Inferiorizou-se, deixando-se dominar por factores que lhe deveriam dar coragem e ânimo. Preocupou-se com o público, portuense na maioria; influenciou-se com a alma dos adversários e desmoralizou-se com os erros do árbitro...» A arbitragem coube ao galego Rafael Nunez e, fazendo fé em Ricardo Ornelas, «a grande penalidade que deixou o Sporting KO foi simplesmente bárbara», errando assim e errando também ao anular um golo ao Sporting alegando mão de Portela, que não existiu, mas «em compensação validou o ponto de Jaime Gonçalves, apesar de a bola ter sido aconchegada com a mão, antes de atirada».
Olhanense afastado da final com «golo sombra» que até comoveu «capitão» do Sporting
Ordem do rei de Espanha e coronhadas da polícia
Para o acesso à final de Viana com o F. C. Porto o Sporting desenvencilhou-se do Olhanense através de um penalty aplicado com flagrante injustiça — que para a história ficou como... golo-sombra. E por algumas cenas indecorosas. Após o apito do árbitro, sportinguistas apupados, a polícia em campo. Pranchadas, coronhadas e no fim da refrega Salazar Carreira e Joaquim Montalvão, dois dos mais ilustres dirigentes leoninos, feridos com cutiladas. Enquanto isso, Jorge Vieira pedia desculpa aos algarvios pelo erro do... árbitro que o tramara. Era assim. O capitão perfeito. Com prestígio internacional a cintilar. De tal forma que, um ano antes, a 6 de Junho de 1924, o rei de Espanha, Afonso XIII, o agraciara com a cruz de prata da Ordem do Mérito Militar. Luís York, em retrato que fez de si em A BOLA por Março de 1974, deixa tudo mais claro no paralelo com Cândido de Oliveira: «Jorge Vieira foi, como capitão, um grande exemplo e, para nós, o mais eloquente. Juntava em doses equivalentes o seu valor de atleta praticante ao de diplomata do futebol. Nos momentos mais difíceis por que passava a sua equipa Jorge Vieira estava sempre em primeiro plano. Fazia questão de estar. Nas diligências junto dos árbitros — ele que também era árbitro! — sempre a sua figura de fidalgo se impunha por sua nobreza. Como ele só Cândido de Oliveira, jogador brilhante como os que o foram, nos dois ou três anos em que conduziu o Casa Pia Atlético Clube a campeão de Lisboa, revelou-se também excelente capitão, apto para a melhor manobra da sua equipa em todas as circunstâncias, mesmo as mais adversas.»
 
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Portuense revista «Sporting» falava do FC Porto campeão com ironia
Archotes, cortejo e boato no «placard»

Em tom épico, a (portuense) revista Sporting, em cujo cabeçalho se exaltava a divisa Pela raça, retratou assim o ambiente da cidade do Porto: «Numeroso público se dirigiu à gare de São Bento, acompanhado de uma banda de música, a aguardar a chegada dos comboios. Ao entrarem nas agulhas a multidão que enchia a gare rompeu unissonamente em palmas e vivas, saudando nos recém-chegados o F. C. Porto. Fora da estação imensa multidão aguardava igualmente os recém-vindos. Um grupo de populares, empunhando archotes, improvisou um cortejo que com a referida banda de música à frente percorreu várias ruas, vitoriando e aplaudindo o campeão de Portugal. O povo do Porto, que enchia as ruas do percurso, associou-se à manifestação correspondendo com calor e entusiasmo às manifestações de regozijo.» Numa das edições seguintes a mesma revista publicava (deliciosa) nota do seu (anónimo) correspondente em Lisboa: «Causou sensação em Lisboa a notícia da vitória do F. C. Porto. O público, orientado pelos jornais, julgava fácil a vitória do Sporting e daí quando chegaram as primeiras notícias não acreditou e resolveu aguardar mais informes postando-se em frente ao placard de O Século, no Rossio. Já passava das 21 horas quando o boato foi confirmado e não se pode imaginar a decepção dos lisboetas. Até tarde a aglomeração foi grande em frente do referido placard, o único que deu esse informe às gentes desportistas de Lisboa. Sic transit gloria mundi...»

1000 escudos pelo treinador
Com a vitória, em Viana do Castelo, Domingos Almeida Soares ganhara a aposta arrojada que fizera como presidente, contratando, para substituir o mítico Adolphe Cassaigne, o húngaro Akos Tesler, pagando-lhe mil escudos por mês de ordenado. O Porto, na febre da glória reconquistada, saiu em festa, no prolongamento do São João, num sentimento alucinante, que se tornava ténue ardor à flor da pele, formigueiro no corpo, palpitar no sangue, como se, de súbito, a cidade descobrisse novos heróis, os heróis da bola.
 
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1925 – F C Porto campeão de Portugal
Para além de dinheiro, vários outros prémios para campeões
Gillettes, notas secretas e Rua Velez Carneiro

A revista Eco dos Sports recordava o prémio especial que os campeões do F. C. Porto tinham conquistado por via da vitória sobre o Sporting: «Um dos melhores brindes que se costumam distribuir aos jogadores do team vencedor do Campeonato de Portugal é sem dúvida o das onze máquinas Gillette, gravadas em ouro, estojo completo com espelho, pincel, sabão e lâminas. No primeiro ano em que a firma João Machado da Conceição e C.ª pôs em disputa os onze valiosos estojos saiu vencedor o Sporting Clube Olhanense. Tal sucesso causaram as maravilhosas máquinas de barbear que a Direcção do simpático clube algarvio comprou-as aos seus jogadores por onze mil escudos, figurando hoje os estojos na vitrina destinada aos grandes troféus ganhos pelo Olhanense...» Nos sussurros dos cafés do Porto, onde as notícias do sport se mercanteavam, afiançava-se que pela vitória sobre o Sporting os jogadores do F. C. Porto tinham recebido simbolicamente... 100 escudos! Os jogadores do F. C. Porto receberam especiais máquinas de barbear gravadas a ouro e outros insólitos prémios. Secretamente puseram-lhes nos bolsos 100 escudos em notas. É que ainda os consideravam amadores.

Campeões de Portugal
Siska, Júlio Cardoso, Pedro Temudo, Humberto, Coelho da Costa, Floriano, Freire, Balbino, Flávio, Hall e Nunes

Primeira vitória da selecção de futebol (1925) teve Ribeiro dos Reis como seleccionador
Massagens para homens?!

Foi no dia 18 de Junho de 1925, no Campo do Lumiar, em Lisboa, que a Selecção Nacional obteve a primeira vitória do seu historial. Depois de quatro jogos, todos disputados com a Espanha e selados com outras tantas derrotas, entre 18 de Dezembro de 1921 e 17 de Maio de 1925, finalmente o sabor do triunfo, batendo a Itália por 1-0, golo marcado pelo sportinguista João Francisco, que jogava sempre de lencinho a prender os calções, o cinto da sua superstição. Era o arranque rumo aos primeiros momentos de ouro do futebol no contexto internacional, que havia de surgir em Maio de 1928, nos Jogos Olímpicos de Amesterdão — entre uma coisa e outra registo para as inesquecíveis vitórias sobre a França por 4-0, a 16 de Março de 1927, e sobre a mesma Itália por 4-1, a 15 de Abril de 1928. Ribeiro dos Reis foi o seleccionador nacional. Enquanto não chegavam Roquete, Carlos Alves, Valdemar Mota, Vítor Silva, Pepe, João dos Santos e José Manuel Martins, Ribeiro dos Reis percebeu que o segredo passava por solidificar este trio: Raul Figueiredo, Augusto Silva e César de Matos. E apostar forte na lucidez e na voz de comando de Jorge Vieira, que depressa se tornou capitão de equipa, cargo que ocuparia até ao último jogo pela Selecção, precisamente o último das Olimpíadas de 1928, frente ao Egipto. A Selecção foi submetida a uma preparação especial. À militar, como o seu timoneiro. Estágios em regime de reclusão, fora de Lisboa, na Malveira e em Montachique, marchas pelos montes e ginástica respiratória, «alimentação salutar e reconfortante», médico e massagista a tempo inteiro. Perante isso os detractores levantaram a voz, aguçando ironias e imprecações, de jaez assim: «O estágio é uma paródia, as massagens dão cabo dos homens de barba rija, Ovomaltine e chocolates são para crianças.» A tudo foi respondendo Ribeiro dos Reis com prudente silêncio. No campo foi o que foi — fez história. E comovido agradeceu aos jogadores «pelo aprumo, pela correcção, pelo prazer espiritual» de ver «pela primeira vez vitoriosa em competições internacionais a bandeira da nossa terra».

Historicamente diferente
A vitória de Portugal sobre a Itália teve repercussão fantástica nos jornais portugueses. Por exemplo, o Sport de Lisboa até se deu ao trabalho de fazer análise individual aos jogadores – e duas páginas centrais com reportagem fotográfica.
 
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1925 – Bill Tilden Único tenista a ganhar o US Open por sete vezes
Homem-espectáculo
Apesar de Bjorn Börg, de Pete Sampas, de Jimmy Connors ou de John McEnroe, vários especialistas consideram Bill Tilden o maior tenista de sempre. Talvez sim, talvez não. Mas de uma coisa ninguém duvidará: foi o mais trágico de todos! Foi o único capaz de rivalizar com os quatro mosqueteiros de França. Natural de uma pequena cidade do estado da Pensilvânia, chamada Germantown, e filho de um abastado comerciante de algodão, William Tatem Tilden II não se destacou apenas pela capacidade de atacar de qualquer posição do court, pelo potente serviço que deixava os adversários pregados ao chão e pela forte noção de estratégia, mas também por introduzir o espírito do espectáculo no ténis através de actuações ponteadas de elegância e temperamentalismo. Tirando partido da figura alta e imponente (1,88 metros), com ombros largos e tronco sólido quis transformar os courts em palcos de teatro, ousadia que lhe causou alguns amargos de boca. Convicto de que para se atingir o fastígio era necessário harmonizar as componentes física, táctica e emocional, publicou livros nesse sentido, dos quais se destacam The Art of Lawn Tennis, How to Play Better Tennis e Match Play and the Spin of a Ball.

Provocações e ordem presidencial
Durante os seus anos áureos Bill Tilden assumiu por completo o papel de actor principal em court, escrevendo, só, em rasgos de talento inigualável, o argumento do jogo que mais prazer lhe dava. Graças à sua superioridade deliciava-se a fazer dos adversários gato-sapato. Assim aconteceu na final de Wimbledon de 1920, frente a Gerald Patterson. Entrou propositadamente desastroso, perdendo o primeiro set por 6-2. Depois piscou o olho à actriz Peggy Wood, que convidara para o camarote — e arrasou literalmente o australiano nos três sets seguintes. Um dia, explicando esse jeito sádico de jogar, afirmou: «Um jogador de ténis deve em show a quem está nas bancadas de um court o mesmo que um actor deve à audiência de um teatro — e para criar emoção às vezes nada melhor do que dar a ideia de que está tudo perdido. Depois aparece o herói e é o espectáculo...» Famosa ficou, igualmente, uma meia-final de Wimbledon em 1920, contra o francês Jean Borotra, um dos quatro famosos mosqueteiros, da qual saiu vencedor com os parciais de 0/6, 6/4, 4/6, 6/0 e 7/5. Em 1928, estava Tilden suspenso e proibido de actuar pelos Estados Unidos, calhou jogo entre França e Estados Unidos para a Taça Davis. A federação francesa, interessada em encher as bancadas do novo Estádio Roland-Garros, accionou os canais diplomáticos e solicitou empenhos do próprio presidente americano. E então o embaixador dos Estados Unidos em Paris recebeu ordens para passar por cima do capitão da selecção americana e colocar directamente big Bill em jogo
Cinco vitórias no open dos estados unidos, fulgor em Wimbledon e Roland-Garros
Desgraça homossexual e dedo partido em acidente
Depois de perder, por manifesta falta de sorte, as finais de 1918 e 1919 do U. S. Open, Bill Tilden decidiu lutar pelo paraíso levado por uma onda de empol-gamento súbito, um esbraseado fogo doce de vários sonhos ainda para conquistar. Para superar o fraco jogo de esquerda de que adversários mais argutos tiravam proveito, passou todo o Inverno de 1920 a treinar-se num court coberto de um amigo, em Newport — e no Verão reapareceu com um demolidor topspin de esquerda, vencendo o Open dos Estados Unidos por sete vezes, de 1920 a 1925 e em 1929, record que nunca mais ninguém bateria. Aliás, na primeira metade da década de 20 esteve simplesmente imbatível, o seu serviço — que chegou a ser cronometrado em 240 km/h — explodiu em fama, aterrorizava os antagonistas. Durante esse lustro, para além de não perder um única partida na Taça Davis, arrebatou o título de campeão do Mundo de piso rápido. Em 1920 tornou-se o primeiro americano a vencer Wimbledon, na edição seguinte repetiu a façanha, a hipótese do tri ficou arruinada num acidente de viação, em 1922: perdeu pedaço de um dedo, recuperado de mazelas e escoriações arrancou para a liça com a mesma galhardia, nem a ligeira mutilação lhe atenuou a eficácia — modificou apenas a forma de agarrar a raqueta e continuou a ganhar tudo, a liderar o ranking mundial intermitentemente até 1925. Em 1930, já com 37 anos, venceu o torneio de Wimbledon pela terceira vez e ainda ganhou Roland-Garros. Foram os seus últimos grandes triunfos em singulares. Começara a sentir problemas com a justiça americana, a sua homossexualidade já não era só rumor — punhais frios de mágoa mordiam-lhe a alma, despedaçavam-na aos bocadinhos. Mas continuava a jogar. Aliás, aos 52 anos, formando equipa com Vince Richards, ainda ganharia o U. S. Open em pares!

Prisão por assédio sexual, troféus no prego
Bill Tilden tinha outras aspirações na vida para além de jogar ténis: tornar-se actor e dramaturgo, esperanças que morreram no pó sujo de um tempo já gasto em desilusões, angústias, mágoas. A fortuna que juntara gastou-a viajando pelo mundo, convivendo com estrelas do cinema, em luxos de sibarita. Quando saltou a público a sua homossexualidade tentaram bani-lo de todos os courts, em 1947 cumpriu mesmo seis meses de prisão por assédio sexual a menores. Por via disso, directores do Germantown Cricket Club, onde aprendera a jogar, mandaram destruir a fogo todos os quadros que ponteavam as paredes com imagens de Bill em jogo. Apesar de todos os escândalos, da reputação destruída, em 1949 foi eleito pela National Sports Writers Association o mais fenomenal tenista da primeira metade do século XX, com 310 votos. Os outros mais escrutinados, Jack Kramer e Don Budge, quedaram-se pelos 32 e 31 votos, respectivamente. Longe da família desde que frequentara a Universidade da Pensilvânia, desacreditado e engolfado em profunda solidão, morreu de ataque cardíaco aos 60 anos, em 1953, num acanhado quarto alugado em Hollywood. Ao lado da cama encontravam-se embaladas as raquetas que iria utilizar num torneio de veteranos. Os troféus havia muito tinham sido postos no prego, quando o anjo entrou em queda livre.
 
H

hast

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1925 – Jack Dempsey Vagabundo dos «saloons» do oeste conquistou o mundo a soco

De rosto duro e abonecado

A personificação do sonho americano numa época de euforia apenas abalada pelo crash da bolsa de Nova Iorque, em 1929. Natural da pequena cidade de Manassa, no estado do Colorado, William Harrison Dempsey ganhou experiência como boxeur realizando combates nas múltiplas cidades mineiras que proliferavam pelo Oeste dos Estados Unidos. Passara a adolescência como vagabundo, sobrevivendo à custa de fortuitos biscates em saloons, mas em 1914, com 19 anos, resolveu enveredar pelo profissionalismo; seu irmão mais velho, Bernie, pelejava já com esse estatuto e sob o pseudónimo de... Jack Dempsey. Por isso William escolheu para nome de combate Kid Blackie, mudando-o depois para Young Dempsey. A sua fama alastrou pelos cabeçalhos dos jornais, o seu fulgor parecia uma vaga assanhada de um mar de venturas, e isso permitiu-lhe até apoderar-se do nome do irmão — e Jack Dempsey ficaria para sempre como uma das lendas mais fantásticas do século. Em 1919 conquistou o primeiro título mundial de pesados, surrando Jess Willard — em apenas quatro assaltos deixou-o de faces escalavradas, engoiado de sangue e dor, incapaz até de se deslocar ao centro do ringue para o ritual da consagração do campeão. De 1,85 metros e 84 quilos — o que lhe dava uma figura esguia —, rosto duro e... abonecado (que era o que dele diziam as mulheres da América), Jack tornou-se imediatamente um fabuloso fenómeno de sucesso, que o agente Tex Rickard geriu e rentabilizou como nunca acontecera antes no desporto mundial.
Quatro minutos apenas no mais dramático combate da história

Na mesa dos jornalistas
A escolha foi sentimental. À beira da reforma, Pierre de Coubertin pediu aos seus companheiros do COI que escolhessem Paris para sede das VIII Olimpíadas da Era Moderna por forma a limpar-se a imagem de desorganização e espírito de feira que marcou os Jogos de 1900 — feitos à revelia do barão, às vezes até para declaradamente o irritar. Ninguém se esquecera ainda de que até a mágica denominação de Jogos Olímpicos fora substituída por uma outra — Concours Internacionaux d’Exercices Physiques et du Sport e entre outras bizarrias se fez uma prova de pesca à cana no Sena! Ou que a maratona, ganha por Michel Théato, distribuidor de pão em Paris, se fizesse por estradas esconsas, sem trânsito cortado, num dia escaldante, por entre o pó levantado pelos coches que cruzavam os caminhos. Era, pois, justo dar a oportunidade a Coubertin. Na Cidade-Luz. Assim foi. E os membros do COI concordaram também que daí em diante todos os campeões olímpicos teriam os nomes gravados a letras de ouro nas paredes do estádio em que se divinizaram. Dos remoçados Jogos de Paris sairia a famosa divisa — citius, altius, fortius. Mais rápido, mais alto, mais forte. A inspiração brilhou na cabeça de um monge chamado Henri Didon, o barão ficou encantado com ela, lançando-a, de imediato, urbi et orbi. As cheias no Sena, que infernizaram a vida dos parisienses, chegaram a colocar os Jogos em risco. No entanto acabaria por ser o calor a marcá-los; por exemplo, durante a final dos 10 mil metros os termómetros subiram aos 45 graus! E nem isso evitaria o seu fulgor — no fulgor de uma mão-cheia de super-heróis: Nurmi, Weissmuller, Abrahams, Ritola, Liddel.

«Pote de mel cheio de moscas»
Após ter defendido com sucesso por duas vezes o título de campeão mundial de pesados, em 1920, Dempsey colocou o cinturão à disputa perante Georges Carpentier, herói francês da I Guerra Mundial. Nunca um combate teve tanto impacte na imprensa, sobretudo na mais sensacionalista, que não deixou de explorar até à exaustão o facto de Jack ter sido acusado — mas ilibado — de fuga à incorporação militar para a I Guerra Mundial argumentando ser amparo de toda uma pobre e miserável família. Em Jersey City jogava-se também uma cifra histórica, inimaginável: 1,8 milhões de dólares. Apesar de o preço dos bilhetes ser exorbitante, mais de um mês de salário normal de um americano, as bancadas estiveram à cunha, entre os 80 mil espectadores figuravam personalidades como Henry Ford, Al Johnson, George Cohan e John D. Rockefeller — um jornalista descreveu o cenário como... «um grande pote de mel cheio de moscas» e em apenas quatro curtos assaltos Dempsey despedaçou o homem-orquídea.
120 mil e a actriz

Jack Dempsey a caminho do fim
O fim do reinado de Jack surgiria a 23 de Dezembro de 1926, no Sesquicentennial Stadium, em Filadélfia, perante 120.757 espectadores, um record mundial que só parou no Guinness. Nesse dia Gene Tunney ganhou-lhe o ceptro. Mas ainda foi Dempsey quem venceu o campeonato do cheque, arrecadando dois milhões de dólares! Contudo, só em 1931 é que se despediu dos ringues. Perdera apenas seis combates, ganhara 60, 49 por KO. O casamento com a actriz Estelle Taylor amolecera-lhe o espírito de lutador, preferia fazer filmes em Hollywood, estava rico, muito rico. Os anos que se seguiram deram ainda mais encanto à sua lenda. Actuou nos teatros da Broadway sob o epíteto de Manassa Mauler, desembarcou na ilha de Okinawa durante a II Guerra Mundial integrando um pelotão da Guarda Costeira dos Estados Unidos, a troco de cachets de luxo funcionava esporadicamente como juiz de boxe — e nos últimos anos da sua vida, mais para se distrair que para fazer fortuna, comprou e dirigiu um restaurante em Manhattan, decorado com recordações dos tempos de glória, que depressa se tornou uma das grandes atracções de Nova Iorque porque de súbito surgia o herói a servir à me-sa, tirando fotografias com os clientes, erguendo os punhos, afivelando sorrisos ao seu melhor estilo e despachando autógrafos. Morreu a 31 de Maio de 1983, com 88 anos.

Recusa de lutar contra «negro louco»
Em 1924, numa altura em que já fizera alguns filmes em Hollywood, Jack Dempsey abriu a sua carreira de negócios como empresário da cintilante actriz Estelle Taylor, que conhecera no ginásio de Leo Flynn, professor de cultura física de ambos. No ano seguinte casaram-se. Continuava a recusar combater com o negro Harry Wills, pelo que o pugilista de Nova Orleães recorreu ao Supremo Tribunal de Nova Iorque, no intuito de obrigar Jack Dempsey a defrontá-lo para o título mundial de pesados, alegando que a escusa era causada por racismo! O tribunal deu-lhe razão mas Dempsey manteve o finca-pé dizendo que Harry Wills era um doido varrido e deveria ser preso num hospital psiquiátrico. Retorquiu o outro que fossem para qualquer rua de Nova Iorque lutar, que até prescindia dos 200 mil dólares de cachet — replicou Jack que não combatia com um «negro louco e ponto final», que as autoridades desportivas o despojassem do ceptro se quisessem, a novela animou a América, só acabou quando Dempsey aceitou o desafio de Gene Tunney para o que seria o seu canto-de-cisne.
Gene Tunney, homem que destronou Dempsey, era, para além de milionário, oficial e cavalheiro
Mulher rica, filho senador
Nas origens era a antítese do arqui-rival. Se Jack Dempsey nascera pobre e crescera sujo, alimentado mais a sonhos que outra coisa qualquer, James Joseph Tunney deixara estarrecida a sua abastada família de Connecticut, com casa de luxo em Greenwich Village, bairro de artistas e intelectuais de Nova Iorque, quando decidiu tornar-se boxeur profissional. Rosto suave, apaixonado pela poesia, capaz de citar até Shakespeare em conferências de imprensa, compincha do dramaturgo Bernard Shaw, servira como marine na I Guerra Mundial, foi por essa altura que o talento se revelou, ganhando o título de medios-pesados do corpo expedicionário dos Estados Unidos. Quando deixou a tropa apostou no boxe profissional. Em 1922 perdeu o combate para o título mundial de medios-pesados com Harry Greb. Foi a única derrota em toda a carreira. No ano seguinte apoderou-se do ceptro. Ganhou peso e desafiou o já lendário Dempsey para campeão do Mundo. Não sendo um artista do KO, pois faltavam-lhe as potencialidades físicas de Jack, Gene era, contudo, bastante forte a suportar os socos bravios dos adversários, proficientemente tecnicista, científico esgrimista do punho, que destarte amealhava mãos-cheias de pontos em combates com pugilistas muito mais pesados e vulcânicos. Foi o que aconteceu quando, em 1926, arrebatou o título de campeão do Mundo a Dempsey e o manteve um ano mais tarde na controversa desforra que passou para a história como a batalha da contagem longa devido ao facto de Jack ter estado de joelhos bem mais de 15 segundos, por o árbitro apenas iniciar o canto do countdown quando ele se arrastou para o seu topo de protecção. Apenas mais uma vez poria o cinturão em disputa, batendo Tom Heeney. Casara-se, entretanto, com uma multimilionária nova-iorquina e anunciou a despedida: «Já tenha todo o dinheiro de que preciso para viver feliz o resto da vida, não sinto vontade de lutar até que os meus ouvidos comecem a zunir.» Bem-sucedido homem de negócios, morreu em 1978 com 81 anos. Um dos seus filhos chegaria a senador.
 

fcporto56

Tribuna Presidencial
26 Julho 2006
7,173
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Sacramento
Ainda bem que voltaste de novo a estas cronicas hast.O Jack Dempsey foi o idolo do meu pai no mundo do boxe,tal como o Muhammed Ali foi o meu mais tarde.
 
H

hast

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Saudações, caro fcporto56.

A história desportiva norte-americana, com todas as sua imensas e imponentes figuras, é um manancial de factos marcantes no desporto a nível planetário. Por aqui já se pode aquilatar do peso dos EUA em tudo quanto diga respeito a \"mexer o esqueleto\".;-)
Esta publicação do jornal «ABola» (capas do jornal e outras nojeiras, são assunto completamente à parte), é espectacular e digna de ser colocada num espaço como é o Fórum. Caro fcporto56, tudo o que venho postando está online, nada demais da minha parte.
Um abraço para os States.
 
H

hast

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06/09
1926 – Marítimo campeão de Portugal
Jogadores do Belenenses até agarraram árbitro pelo braço
Final de hora só

O escândalo estoirara dias antes. O F. C. Porto, campeão de Portugal em título, foi esmagado pelo Marítimo nas meias-finais: 7-1!!! Os jogadores madeirenses fora de campo só se notavam por uma timidez de crianças grandes. Ninguém dava nada por eles. Viajaram de barco para o continente debaixo do comando de dois extraordinários condutores de homens: Travaços Lopes, antigo jogador do Sport Grupo Império, e João de Araújo, que acicatava os seus rapazes através de hábitos adquiridos na ilha, nos momentos de faina do mar. Ribeiro dos Reis, na História dos Desportos em Portugal, escreveu: «Com fôlego de nadadores que conheciam o fundo das águas da Pontinha, e graças à habilidade natural em todos os avançados, principalmente o meia-esquerda Ramos, conhecido pelo janota, os madeirenses formavam uma liga solidíssima.» Apesar do vendaval madeirense que colocou em estilhas os portistas, para a final os prognosticadores centravam-se quase sem excepção na aposta pelo Belenenses, que batera o Olhanense por 2-1. O jogo fez-se no Campo do Ameal, pertença do Sport Club Progresso, do Porto — cheiinho como odre, sobretudo por portistas unidos no apoio ao... Marítimo, num sinal de que nem sempre as humilhações dão em azedume contra os humilhadores! O Belenenses, com uma equipa de notáveis em que pontificavam Augusto Silva, César de Matos, Rodolfo Faroleiro, Silva Marques e Pepe, foi recebido com parcimónia. Os lisboetas começaram por dominar mas a breve trecho o jogo foi-se repartindo, em toada de equilíbrio. Os jogadores do Belenenses, menos robustos e fogosos que os do Marítimo, mostravam ressentimento pela pujança física dos adversários, cujos encostos derrubavam naturalmente. Aos 35 minutos o Belenenses incorreu em penalty mas o guarda-redes defendeu-o. O jogo de tropel não permitia assento e calma, o intervalo fez-se sem golos, aos 55 minutos, na cobrança de um livre, Fernandes apontou o primeiro tento; aos 60, no seguimento de mais um pontapé livre, segundo golo obtido de um lance cheio de oportunidade de Ramos. E não se jogou mais! Ribeiro dos Reis contou porquê: «O nervosismo dos lisboetas, alegando irregularidade no tento sofrido, atingiu o auge e Augusto Silva increpou o juiz de campo, segurando-o fortemente por um braço, pelo que recebeu ordem de saída do campo. O jogador recusou-se, os companheiros de equipa fizeram-se solidários com ele e o árbitro interrompeu o jogo, dirigindo-se à bancada principal para consultar os dirigentes. De regresso ao terreno de jogo o árbitro confirmou a sua decisão e como Augusto Silva mantivesse a sua recusa de sair, e com ele os restantes companheiros, foi da-do por findo o encontro. O grupo do Marítimo foi calorosamente aplaudido e, incitado pelo público, deu uma volta ao rectângulo de jogo entre uma tempestade de palmas.» No Sport de Lisboa seguinte Ribeiro dos Reis não calava outro lamento: «Caído o verniz da compostura, os facciosos (portuenses) deram largas ao seu despeito e ao seu rancor a Lisboa, os jogadores do Belenenses tiveram de passar por entre alas de público que os cobriu de vaias, dirigindo-lhes os insultos mais soezes. Estiveram iminentes vários conflitos...»

Campeões de Portugal
Ortega, Ranfão, Correia, Domingos, Lopes, Sousa, J. Ramos, Alves, Camarão, M. Ramos e Marques

Revolução de Herbert Chapman passou pelos pés de Charles Buchan

Golos para um, libras para outro

Nascido em 1891, Charles Buchan, pelo modo criativo como o futebol lhe saltava dos pés, pelo mérito como passador e estratego, fez do Arsenal a potência emergente do pós-guerra. Professor para além de profissional de futebol, os dirigentes temiam-no, alguns diziam mesmo à boca cheia que «era esperto de mais para jogar à bola», durante a I Guerra Mundial funcionou como sentinela do exército britânico nas famosas batalhas de La Lys e, em mais um sinal da sua fervorosa imaginação, acabou por protagonizar a mais insólita transferência do futebol mundial. Estava no Sunderland quando o Arsenal lhe lançou o canto da sereia. Os directores disseram que era inegociável, acabou por ser ele a propor uma alínea revolucionária no contrato: para além das mil libras pela desvinculação que o Sunderland receberia, o Arsenal pagaria mais 100 libras por cada golo que o fenomenal Buchan marcasse durante a primeira época. Regularmente inspirado, marcou 18. E assim deu vitórias ao Arsenal e libras ao Sunderland. Depois de abandonar o futebol tornou-se famoso como jornalista e locutor de rádio. Ninguém tem dúvidas. Sem o estilo de Buchan Herbert Chapman não teria conseguido, a partir de 1925, revolucionar o futebol e o Arsenal através do WM, sistema táctico idealizado como antídoto perfeito à lei do offside entretanto lançada. Chapman, profundo conhecedor de psicologia, tinha domínio quase hipnótico sobre os seus pupilos — e até se dava ao luxo de decidir como é que deviam vestir-se dentro e fora do campo, que cortes de cabelo deviam adoptar. Também foi ele, amiúde contra a federação inglesa, quem lançou os números nas camisolas, introduziu as bolas brancas e propugnou pelos holofotes nos estádios para que o futebol pudesse jogar-se normalmente à noite.
 
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hast

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> 1926 – Marítimo campeão de Portugal
Jogadores do Belenenses até agarraram árbitro pelo braço
Final de hora só

> O escândalo estoirara dias antes. O F. C. Porto, campeão de Portugal em título, foi esmagado pelo Marítimo nas meias-finais: 7-1!!!

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Uiiiiiiii. Esta doeu. ;-)
 
H

hast

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06/10

1927 – Primeira Volta a Portugal em Bicicleta
Raul Oliveira lançou sementes com dinheiro da lotaria

Ideia explodiu nas trincheiras
A Volta a Portugal nasceu da inspiração de Raul de Oliveira. Era jornalista do Sport de Lisboa e em 1917 foi integrado no Regimento de Transmissões que partiu para a I Guerra Mundial. Dois anos depois mantinha-se em Arrás e pediu licença para acompanhar o Tour que renascia dos escombros, com algumas das estrelas mortas em combate. Regressaria, entretanto, a Portugal para assumir a chefia de redacção de Os Sports, pertença do Diário de Notícias. Aos administradores lançou por várias vezes a sugestão de organizar uma competição à semelhança do Tour. Pouca foi sendo a receptividade. Com vários contos de réis que ganhou na lotaria lançou ele próprio a Volta a Lisboa, com competições para senhoras, ganhas pelas duas filhas de Félix Bermudez. Foi um êxito. E assim Beirão da Veiga, administrador do DN, cedeu, a primeira Volta a Portugal foi marcada para 26 de Abril de 1927. Como resposta imediata à iniciativa do Diário de Notícias a bissemanal revista Sporting, dirigida por Oliveira Valença, organizou a Volta ao Porto, em 10 etapas, ganha por Aníbal Carrecto. Só que o fulgor centrara-se todo na outra Volta. A Portugal inteiro. E nunca mais deixaria de ser assim.

Fome e crime da assistência
Nas crónicas dos jornais surgem, a propósito da primeira edição, textos verdadeiramente insólitos. Desconcertantes. Um repórter indignava-se por «os corredores serem obrigados a passar fome, pois não podiam comer, durante muitos dias, aquilo a que estavam habituados»! Outro invectivou o facto de um técnico do Benfica ter prestado assistência ao sportinguista Alfredo de Sousa, após acidente sofrido perto de Odemira — não dispondo nesse instante de qualquer apoio do seu clube. Por isso bradava — deveria ser desclassificado!

Bicicletas expostas
Ninguém percebeu que a Volta poderia ser o mais eficaz meio de publicidade que o desporto poderia ter no Portugal acanhado daquele tempo. Nem um sinal de marketing se viu. Aliás, Eduardo Martins, comerciante apaixonado pelo ciclismo que vendia bicicletas a prestações e com descontos inusitados a quem não pudesse comprar de outro modo, pediu apenas que as estrelas a quem tais privilégios dera deixassem, depois, expor as máquinas nas suas montras com os respectivos «nome e fotografias». Foi o bastante para que António Augusto de Carvalho e vários outros ciclistas de nomeada tivesse sobre si a ameaça de... passagem à categoria de profissionais! Estalou polémica mas acabou por continuar tudo na mesma — amadoramente.

Herói de Sintra correu pelo Carcavelos e ganhou
António Augusto Carvalho e expediente dos treinos
No regulamento da Volta a Portugal surgiram preceitos aparentemente bizarros: «A prova, que se realizará anualmente, é destinada a estradistas amadores de vá-rias categorias e não são permitidos treinadores de reboque. Os participantes terão de possuir robustez física suficiente para a dureza da competição, isto apreciado por visão médica — e a indumentária dos participantes terá de obedecer a determinados preceitos, tais como cor preta dos sapatos e das meias, assim como calções apropriados a corridas de estrada.» Nas etapas até 30 quilómetros não eram permitidas médias inferiores a 20 km/h — mas se ultrapassassem 150 quilómetros só seria eliminado quem apresentasse média inferior a 16 km/h. Com partida e chegada em Lisboa, a prova compunha-se de 18 etapas cujas metas se localizavam em Setúbal, Sines, Odemira, Portimão, Faro, Beja, Évora, Portalegre, Castelo Branco, Guarda, Torre de Moncorvo, Bragança, Vidago, Braga, Porto, Coimbra e Caldas. À partida 42 concorrentes, divididos por três categorias: fortes, fracos e... militares! Quinze acabaram por ser os desistentes. Gil Moreira, na sua História do Ciclismo, conta que o Grupo Desportivo de Carcavelos deu-se ao luxo (e ao trabalho) de fazer em treinos todas as tiradas que comporiam a prova. Chefiados por Aníbal Firmino da Silva, foram recebidos na vila, no regresso, com bandas de música, foguetes e festas de vulto. Era apenas premonição, pois o seu possante António Augusto de Carvalho terminou a Volta como vencedor, no tempo de 79 horas e 8 minutos, adiante de Nunes de Abreu, do Leixões, e de Francisco Santos de Almeida, do Benfica. Quirino de Oliveira, do Campo de Ourique, sagrou-se rei dos sprints, vencendo oito das 18 etapas. Acabou por desistir devido a acidente. António Augusto de Carvalho averbou cinco triunfos, Francisco Santos de Almeida, do Cruz Quebrada, quatro.

Bagaço na massagem
Imagens dos primeiros dias das bicicletas à conquista das estradas de Portugal, verdadeiramente insólitas, sobretudo essa de um dos ciclistas a ser massajado com... aguardente à beira de uma taberna. Foi com estórias assim que o fascínio alastrou.
 
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hast

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07/01

1927 – Belenenses campeão de Portugal
Já com Pepe ao lado de Augusto Silva e César de Matos e sob comando de Artur José Pereira
Em nome do pai

Um ambiente fantástico no Lumiar. Afluência estrondosa de público — recorde dos recordes. O Belenenses na ânsia de apagar a má impressão da final de 1926; o Vitória de Setúbal na condição de campeão de... Lisboa. E em confronto duas diferentes escolas de futebol: os homens da cruz de Cristo com atlético jogo de passes largos, de passagens velozes para o ataque e defesa estrénua — ao passo que os sadinos desenvolviam o seu futebol de pé para pé, sem apertado sentido ofensivo, o jogo pelo jogo, no prazer do espectáculo. Mais uma vez a crónica de Ribeiro dos Reis a marcar a história do primeiro título de Artur José Pereira, que depois de ter trocado o Benfica pelo Sporting, no que foi a primeira vulcânica transferência do futebol português, deixou o Lumiar para fundar o... Belenenses: «A primeira dezena de minutos foi de aflição para os lisboetas, pois o Vitória, favorecido pelo forte vento que soprava, instalou-se tenazmente no meio campo adversário e exerceu pressão forte, de nada valendo as tentativas do Belenenses para replicar. Os setubalenses não prosseguiram até ao fim do primeiro tempo com a autoridade do princípio, pois o seu predomínio, pelo tempo adiante, foi-se esbatendo, mas as maiores ameaças de ataque pertenceram-lhes. João dos Santos, logo no começo, obrigou o guarda-redes lisboeta à melhor defesa da tarde e aos 27 minutos perdeu ocasião de marcar quando, precipitando-se, rematou a um lado da baliza a despeito de, à frente dela e com toda a defesa contrária batida, todos os trunfos no lance lhe pertencerem. O Belenenses, todavia, ainda conseguiu criar um calafrio à defesa do Vitória, a um minuto do intervalo, a seguir ao único pontapé de canto que os setubalenses cederam, pois estes saíram-se de apuros com felicidade. Embora no segundo tempo o soprar do vento favorecesse os lisboetas, estes não começaram melhor, antes pelo contrário, foi o Vitória que chamou a si o comando do jogo. Lentamente, porém, o Belenenses foi encorpando o seu jogo de ataque e aos 18 minutos obteve o primeiro golo de um cruzamento de César a que Pepe simulou acorrer, deixando a Augusto Silva a oportunidade de rematar vitoriosamente. Esta vantagem serviu de tónico e de então em diante a confiança nas suas possibilidades foi crescendo tanto e tanto, animando os jogadores, que nos últimos cinco minutos o Vitória teve de acantonar-se na extrema defesa. E nestes cinco minutos passou o Belenenses de 1-0 a 3-0, ambos os golos marcados por Silva Marques, em plena passada, um a aproveitar centro de José Luís e o outro centro de Fernando António, em que o scorer e o defesa-esquerdo do Vitória entraram enfeixados pela baliza.»

Campeões de Portugal
Assis, Azevedo, Marques, Joaquim Almeida, Augusto Silva, César de Matos, Fernando António, Alfredo Ramos, Silva Marques, Pepe e José Luís

À imagem da Taça de Inglaterra
O sistema de disputa do Campeonato de Portugal sofreu para 1927 uma modificação fundamental. Em vez de se admitirem apenas os campeões regionais, num torneio rápido por eliminatórias, passaram a ter direito a entrar na liça outros clubes de comprovado renome e categoria. Cartel de jornalistas, sob liderança de Ribeiro dos Reis, estivera na base da alteração, inspirada no sistema da Taça de Inglaterra, mas de uma parte da sua sugestão se fez letra-morta: que a final se disputasse na capital, fossem quais fossem os adversários. Em Lisboa foi, no Estádio do Lumiar, com a presença do Presidente da República, porque ambos os finalistas eram sulistas: Belenenses e Vitória de Setúbal.
Príncipe do Sado
Armando Martins Armando Martins era estrela do Vitória. Príncipe do Sado lhe chamavam. Interior-direito nos Jogos Olímpicos de Amesterdão, era, segundo Severiano Correia, no retrato que lhe traçou em Poeira do Passado, «um dos artistas mais cerebrais dos seus tempos, tratando sempre a bola por tu, o motor de toda a equipa, seu estratega, genial inspirador de lances ofensivos». Eduardo Augusto, João dos Santos, Octávio Cambalacho, Armando Martins e Francisco Nazaré formaram linha de avançados famosa, estonteante, que contribuiu de forma decisiva para que Artur John fizesse do Setúbal campeão de Lisboa e vice-campeão de Portugal nos loucos anos 20.
Rebelde, «sururu», perna partida César de Matos
Um dia decidiu partir de Campo de Besteiros, onde nascera, para Lisboa, na ânsia de se tornar jogador de futebol. Artur José Pereira abriu-lhe os horizontes. E fez de si um dos melhores jogadores portugueses dos anos 20. Com Tamanqueiro e Augusto Silva formou a linha média dos Jogos de Amesterdão. Era um lutador indomável, rápido sobre a bola e com extraordinário poder de elevação, que lhe valeu legenda que o marcaria para sempre: o jogador que voa. Temperamental, excessivamente nervoso, demasiado irreverente — teve o baptismo olímpico em risco por causa disso. Poucos dias antes da partida para a Holanda, em desafio no Campo das Amoreiras entre o seu clube e o Vitória de Setúbal, para o Campeonato de Portugal, recebeu ordem de expulsão, recusou-se a aceitá-la, armou-se tal sururu que obrigou até o tenente-coronel João Luís de Moura, governador civil de Lisboa (e que haveria de ser também presidente do Belenenses) a entrar em campo para o retirar de dentro das quatro linhas, quase naquele jeito em que se puxa um menino rabino pela orelha. A sua sorte foram os empenhos que logo se moveram para que o castigo se abafasse, porque era preciso na Selecção olímpica. Assim se fez. Coisas do futebol português que vêm de longe. Em 1929 partiu uma perna, não pôde de tal modo, disputar a final do Campeonato de Portugal ante o União de Lisboa e somar o segundo título. Isso nos anos 30 equivalia a fim de carreira — mas, sem se submeter ao destino, recuperou e de dentes cerrados, ao seu jeito, regressou ao Belenenses e à Selecção Nacional. Ainda contribuiu para a conquista de mais um título de campeão de Portugal, em 1933, para o «exército da cruz de Cristo».
 
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O Pepe, a fazer fé naquilo que nos dizem as crónicas da altura, foi um jogador, sobre dotado, que apareceu no futebol português, tendo-se repercutido as suas virtudes no Belenenses campeão da altura