A Liga dos Campeões.
O F. C. Porto ganhou a primeira edição do Campeonato da Liga. Apesar dos empeços que o «poder de Lisboa» lançou para o seu caminho, mandando repetir um jogo porque o árbitro dera o dito por não dito.
Cumpriu-se a tradição. O F. C. Porto, que ganhara a primeira edição do Campeonato de Portugal, venceu, igualmente, a edição de arranque do Campeonato da I Liga. De forma fulgurante. Apesar de alguns empeços lançados no seu caminho pelo «poder de Lisboa»... A entrada nem sequer foi com o pé direito. Em Lisboa, empate a um golo com o Belenenses. Ao intervalo os portistas perdiam por 0-1, mas logo após o reatamento Carlos Nunes igualou. «O F. C. Porto cresceu sobre o adversário, comandando bem a situação, mas não teve sorte para alcançar a vitória que várias vezes esteve à vista. E apesar do seu domínio os portuenses estiveram em risco de derrota, ao sofrerem um injusto penalty com que o árbitro os castigou. O Belenenses não soube, porém, aproveitar a deixa. Bernardo apontou fraco e à figura e Soares dos Reis não teve dificuldade em afastar o perigo.» Mas, em questões de arbitragens e outros jogos subterrâneos bem pior estava para vir.
Na segunda jornada, 7-1 à Académica, estreando-se na linha avançada o madeirense Artur Alves, que, segundo cronista da época, «revelou qualidades, deixando impressão de que será, no futuro, um esplêndido elemento, embora sem esquecer Acácio Mesquita». Marcou dois golos, tal como Carlos Nunes e Pinga, cabendo o outro a Lopes Carneiro.
Ainda no Porto, vitória por 2-1 sobre o Benfica. Fervilhou no Ameal esse tumulto das gentes que querendo ignorar as suas próprias tragédias, desventuras, sofrimentos ansiavam por redimir a desgraça na vitória dos seus ídolos, na vitória do Norte sobre o Sul. «Tecnicamente a primeira parte valeu mais que a segunda. O F. C. Porto, nesse meio tempo, jogou como em dia grande e o Benfica nem por ser dominado teve falta de ânimo. O guarda-redes Amaro valeu aos vermelhos com três excelentes defesas em que salvou lances perigosíssimos... Marcaram os golos, Pinga e Lopes Carneiro.»
Os profetas da desgraça e a cabeça de Szabo.
Oito dias depois, em Fevereiro de 1935, o F. C. Porto perdeu em Setúbal, por 0-1. Arautos de desgraça clamaram contra o destino, falando de uma equipa destroçada, quase em jeito de espectros e não de gente com sangue quente e de ambição correndo nas veias, porventura agitada por frémitos de impaciência ou desconfiança em si próprios. E, nos múrmurios dos bastidores, pedia-se a cabeça de Szabo. «A linha avançada do F. C. Porto furtou--se ao choque com a defesa contrária e esta impôs a sua vontade. E fizeram muitas esquivas e acabaram por inferiorizar-se ante o adversário. Minutos antes do golo marcado por Rendas, Carlos Nunes teve um golo à vista, num remate de cabeça que a trave defendeu. Na segunda parte o F. C. Porto merecia ter marcado, pela pressão que exerceu, apesar de os setubalenses se remeterem a uma porfiada defesa, de forma a salvar o resultado. Dentro da área chegaram a juntar-se 16 jogadores! A cinco minutos do fim, um ataque cerrado dos portuenses foi concluído com um excelente remate de cabeça que chegou às redes, mas que o árbitro anulou por suposta deslocação...»
Regresso às vitórias a 16 de Fevereiro, em Lisboa, perante o União de Lisboa: 2-0. E, enfim, a redescoberta do caminho da felicidade, do brilho, da glória mas sem que isso se percebesse logo. «A primeira vintena de minutos teve brilhantismo do melhor que podem proporcionar grupos portugueses. Tudo a sair bem de parte a parte, paradas e respostas sucessivas, a bola ora sobre uma baliza ora sobre outra, no comportamento e na limpeza das entradas... Os guarda-redes foram as figuras salientes desses vinte minutos Figueiredo, do União, e Soares dos Reis, do Porto, em autêntica competência um com o outro...
Na segunda parte, com golos de Artur Alves e Lopes Carneiro, o F. C. Porto adiantou-se...
Cores vivas de esperança.
No Porto, 3-0 ao Académico, com tentos de Pinga, com «um remate formidável, quase de meio campo», e de Carlos Nunes (2).
E, uma semana volvida, outra vez no Ameal, no fecho da primeira volta, o F. C. Porto bateu o Sporting, por 4-2. Tumulto e animação de gente eufórica, que enchia as bancadas de ruído e cor como se o azul-e-branco de algumas das bandeiras que tremulavam ao vento fosse, outra vez, as cores vivas e quentes da esperança e da exultação. «A primeira parte do encontro deve ter compensado sobejamente as centenas de entusiastas que se deslocaram ao Porto. Foram 45 minutos de jogo rápido, enérgico, por vezes muito bem conduzido. O primeiro tempo teve beleza e emoção e, se cansou um pouco os jogadores o andamento da segunda parte ressentiu-se do esforço inicial , não deixou também de cansar os espectadores que tiveram de viver a partida minuto a minuto, na incerteza do resultado. O jogo iniciou-se de feição para os portuenses. Dois golos seguidos, quando passavam apenas cinco minutos de luta, pareciam o prelúdio duma vitória copiosa. O Sporting, que soubera suportar os azares da luta, conseguiu também dois golos em cinco minutos. Depois do empate, uma ligeira desorientação que poderia ter custado a derrota aos campeões do Norte. Mas um terceiro golo, marcado por Pinga, levantou de novo o grupo, pondo um freio oportuno à subida do Sporting. No segundo tempo, o andamento do jogo baixou. A rapidez e energia do início não podiam viver os 90 minutos. E a luta perdeu brilhantismo. No entanto, o F. C. Porto, nesta segunda parte, teve vantagem, mesmo com dois elementos magoados. Avelino Martins e Carlos Pereira não consentiram que o Sporting voltasse a ter ascendente. Depois do quarto golo, aos 20 minutos, por Pinga, numa jogada de boa execução toda serenidade e inteligência , o resultado não oferecia dúvidas... Neste jogo, a «máquina do F. C. Porto trabalhou afinada, e o seu volante no jogo de ataque (aquele que demonstra a eficiência da máquina) foi o excelente jogador que ocupa o lugar de interior-esquerdo Pinga!»
Para esse desafio organizou o Sporting um comboio especial, tendo sido de 50 escudos o custo da viagem.
A auréola romântica do jogo para... repetir.
Mas os seus adeptos, cerca de mil, quase se perderam naquele mar eufórico de azul-e-branco, raramente se ouvindo os seus incitamentos. Ganhando, os portistas tinham cada vez mais incandescente o sonho. Que mais ficaria no arranque da segunda volta, a 10 de Março de 1935, quando o F. C. Porto bateu o Belenenses, por 5-4, numa partida brilhantíssima, com emoção, fulgor e entusiasmo! Um desafio que teve de tudo: a auréola romântica do imprevisto, energia, frequentes pedaços de bom jogo, erros a justificar a marcação de bolas e, pairando sobre estas e outras coisas que reflectem, no campo e em volta, confiança, desilusão, entusiasmo e alegria aquele factor que sempre acompanha o volta-face, que se chama emoção.
Na primeira parte, 3-1 para o Belenenses, com o único golo portista marcado por Pinga. O quarto de hora final do primeiro tempo fora efectivamente aterrador para o F. C. Porto, que se deixou manobrar, dando, por vezes, impressão de reacção impraticável. E, em face disso, ao intervalo, a possível vitória dos lisboetas era aceite de um modo geral. As esperanças desfeitas, a angústia nos rostos dos adeptos portistas e no olhar frio com que os seus jogadores saíram para a cabina. Como se da atmosfera ressumasse mais que melancolia, angústia na iminência da esperança atraiçoada.
O árbitro e a Polícia a cavalo.
O futebol e os homens têm coisas assim. A clara diferença dos estados de espírito das duas equipas, ao terminar o primeiro tempo, serviu, afinal, para valorizar de forma brilhantíssima o primeiro quarto de hora da segunda parte, findo o qual o F. C. Porto tinha marcado três golos, transformando o 3-1 do adversário em 4-3 a seu favor. Esta recuperação empolgou. Não houve, decerto, ninguém no campo que se tivesse abstraído da emoção que o jogo teve às mãos-cheias, nesse curto período, que ainda pareceu mais curto pelo sem-número de coisas julgadas pouco antes incríveis e que se verificaram.
Os jogadores portistas, com os rostos cobertos de camarinhas de suor e coração quente, continuaram, apaixonados, a liça. Difícil descrever o ambiente e espectáculo dentro e fora do terreno. O Belenenses empatou já no quarto de hora final e, aos 83 minutos, o golo da vitória do F. C. Porto...
Mas, para que o dramatismo se estendesse ainda mais, a um minuto do fim, o árbitro, António Palhinhas, assinalou penalty contra os portistas, por alegada mão de Valdemar. Caiu Tróia! A atitude do árbitro foi, porém, incerta e, acabando por ir perguntar ao seu «lineman» se fora ou não «penalty», deu o dito por não dito, reatando o jogo com bola ao ar. Brados e gritos, blasfémias praguejadas pelos lisboetas e muitos dos seus adeptos que se tinham deslocado ao Porto em comboio especial, pagando... 40 escudos pela viagem, intervenção policial, com a guarda a cavalo amainando a tempestade à força de bastão.
Os dirigentes do Belenenses não calaram o desafio: que protestariam o jogo. Dito e feito.
O árbitro-jornalista e as agressões em Coimbra.
Uma semana volvida, nova vitória do F. C. Porto, em Coimbra, por 4-2. Num desafio que decorreu em ambiente de paixão intensa e que voltou a ter lamentável final. «O desafio decorreu num ambiente de paixão intensa. Parece que entre conimbricences e portuenses havia contas antigas a pôr em ordem e o encontro, naturalmente, ressentiu-se desses desejos de revindicta. Tavares da Silva dirigiu o encontro. O ambiente apaixonado do desafio prejudicou o seu trabalho, que foi muito irregular. Mas os deslizes que teve não justificam as lamentáveis agressões de que foi vítima por parte do público.»
Tropeção e jogada de secretaria.
A quatro jornadas do fim, tropeção portista. Que poderia ter sido fatal. Nas Amoreiras, vitória do Benfica, por 3-0. Com mil portistas nas bancadas, que tinham chegado em comboio especial. Pagando 50 escudos cada qual. «Os portuenses não responderam à chamada no seu encontro vital com o Benfica. Por mau dia, falta de ânimo, caso psicológico ou fosse pelo que fosse, o grupo do F. C. Porto não se exibiu como exigiam as suas necessidades, não esteve à altura da situação e do seu próprio valor. Jogou muito mal, abaixo nitidamente das suas possibilidades...»
E, apesar de ter batido o União de Lisboa, por 7-4, parecia que o céu desabara sobre a cabeça dos portistas. Surpreendentemente, a FPF dava provimento ao protesto apresentado pelo Belenenses, no jogo emotivo do Porto. Era talvez um processo (ou uma solércia?) para tentar entravar a marcha ascensional que o F. C. Porto vinha tomando na disputa do Campeonato da Liga. Não surtiu o efeito desejado, porquanto em novo jogo os portistas mantiveram a sua posição de líder da competição, ao vencer, de novo, o Belenenses. «O F. C. Porto ganhou com justiça, por um golo apenas, mas com uma superioridade que podia ter tido maior expressão no segundo tempo.»
Depois, ambas no Porto, duas vitórias: 7-0 ao Académico do Porto, 3-2 ao Vitória de Setúbal.
Campo Grande de sonhos azuis
E, a 12 de Maio, no Campo Grande, a grande decisão. Sporting e F. C. Porto eram os candidatos que restavam. Aos portistas bastava um empate. E foi com um empate (2-2) que regressaram ao Porto. Apoteoticamente. «O estado de espírito com que os dois grupos encaravam o encontro era absolutamente diferente. O F. C. Porto entrava já a ganhar por 2-0 (da primeira volta) e com essa vantagem podia adoptar uma táctica em que arriscasse pouco, preocupando-se mais em salvar o resultado que em construir uma vitória que desse brado. A circunstância de não poder utilizar Pinga, que se encontrava doente, deve ter levado a equipa a encarar mais ainda a partida sob esse aspecto de preocupação exclusiva de manter o resultado. Pinga é o verdadeiro cérebro do ataque portuense, o inspirador das suas jogadas de conjunto.»
Nesse último jogo, o da consagração, o F. C. Porto alinhou com Soares dos Reis; Avelino Martins e Jerónimo Faria; Nova, Álvaro Pereira e Carlos Pereira; Lopes Carneiro, Valdemar Mota, António Santos, Carlos Mesquita e Carlos Nunes e os dois golos foram marcados por Carlos Nunes e Lopes Carneiro.
A chegada ao Porto dos jogadores consagrou o brilhantismo com que o F. C. Porto conquistara o Campeonato da I Liga. Milhares de pessoas aclamaram os vencedores, que foram conduzidos em triunfo desde a estação de S. Bento até à sede da Associação de Futebol.
Ouro por subscrição pública.
A 19 de Maio, por iniciativa de Bento Correia e de Sebastião Ferreira Mendes, foi iniciada uma subscrição pública entre os associados do F. C. Porto destinada a oferecer medalhas de oiro a todos os jogadores que conquistaram o Campeonato da I Liga. Por essa altura, sabia-se que estava depositada na Caixa Geral de Depósitos a quantia de 209.079 escudos para construção do Estádio Distrital, sonho que os portistas aqueciam, mas em Junho o projecto foi abandonado porque Herculano Ferreira, o governador, deixara o cargo, pelo que a verba foi distribuída por casas de caridade.
In «abola»