Um cadáver e um Mausoléu
Não se assuste o leitor com o título. Tão pouco pense que lá por o mês de Março (escrevemos quando o dia dos enganos ainda não chegou) ser consagrado ao deus Marte (deus da guerra na mitologia romana) e o ano de 2011 influenciado pelo planeta Saturno, esta irá ser uma soturna crónica com muitos mortos e feridos. Prometemos que não lhe reservamos um desfilar de estórias tétricas e deprimentes. Poderíamos ter escolhido outro título - «Um cadáver num mausoléu», mas, que diabo, colocar um cadáver num mausoléu é coisa tão óbvia que não despertaria a curiosidade de ninguém e só nos daria pano para uma manga.
Nesta crónica, um cadáver e um mausoléu são coisas distintas, embora a história do mausoléu seja anterior à do cadáver. Em bom rigor, o título deveria ser «Um mausoléu e um cadáver». Acontece que primeiramente encontramos a estória do cadáver e só depois a do mausoléu, pelo que o título ficou assim mesmo, embora as estórias de hoje não se esgotem no FC Porto - Académica que decidiu o título de 19555-56 e na evocação de um treinador húngaro que no início dos anos 40 treinou o nosso clube Lipo Herczka.
Para memória futura da nossa história, aqui ficam, então, algumas estórias e apontamentos que a nossa última pesquisa nos revelou e, a partir de agora, passamos a partilhar com os leitores.
Cadáver no balneário
Comecemos pelo cadáver. Ninguém, por certo, de quantos acompanham a história do FC Porto, se esquece da época de 1955/56.
Relembramo-la recuando à de 1939/40, era Miguel Siska o treinador. Com apenas uma derrota em 17 jogos (frente ao Sporting, por 4-3, na 14ª jornada), o FC Porto chegou à última jornada com tolerância zero para perder pontos e com uma difícil deslocação às Amoreiras, para defrontar o Benfica.
Como se pode ler em «O Século do Dragão», foi um duelo épico, de muito sofrimento, de corações apertados, de unhas roídas até ao sabugo, que o nosso clube venceu com dois gigantes entre os heróis: o guarda-redes húngaro Bela Andrasick e o «velho» Pinga, autor de dois dos três golos que coloriram a vitória azul e branca por 3-2.
O Sporting, segundo classificado, caía de pé e o FC Porto, com dois desconhecidos vindos do Leste, sempre de chuteira quente Kordonya (28 golos) e Petrack (16) conseguia, tal como o seu treinador, o bicampeonato. Era o tempo dos guarda-redes Bela Andrasick, Soares dos Reis e Rosado, de Castro, Carlos Nunes, Gomes da Costa, Pacheco, Kordonya, Petrack, Pinga e António Santos na avançada, Baptista da Costa, José Baptista, Carlos Pereira, Lopes Carneiro, Guilhar, Pereira da Silva, Poças, Sacadura, Sarrea e Zeca na defesa e meio campo.
Depois
bom, foram dezasseis anos de travessia de deserto até à chegada de Dorival Knippell, um brasileiro descendente de imigrantes alemães, que desde os seus tempos de bem sucedido guarda-redes ganhara a alcunha de Yustrich.
Contratado pelo presidente Cesário Bonito, quando era vendedor de automóveis em Belo Horizonte, a sua terra natal, Yustrich virou a equipa do avesso, mudando-lhe os hábitos e as mentalidades, apostando tudo no profissionalismo, na organização e na disciplina. Ganhou. O campeonato não foi, longe disso, pipoca doce. A derrota sofrida na penúltima jornada (25ª) frente ao Sporting (1-0) só segurou o FC Porto no comando por obra e graça do empate (1-1) conseguido no ninho das águias (21ª jornada), o qual valeu ouro no confronto directo, uma vez que na sua casa o FC Porto vencera (8ª jornada) por 3-0.
Mas, para ser campeão, era preciso vencer a Académica de Coimbra nas Antas, no último jogo.
E é aqui que entra a estória (quase desconhecida do cadáver. Quem viu ao vivo esse jogo, como nós, sabe o sofrimento que se viveu naquelas bancadas enquanto o resultado se manteve teimosamente, sem que qualquer das equipas conseguisse violar a baliza contraria. As macas andaram num verdadeiro corropio, socorrendo corações descompassados, porque o FC Porto não marcava e Ramim, o guarda-redes academista, rubricava a melhor actuação da sua vida. Defendeu tanto que cansava só de ver.
Ao intervalo tudo como no início. nem um só golo a colorir o placard. Como conta o jornalista Homero Serpa, em «Cândido de Oliveira, uma biografia» e é reproduzido em «A Paixão do Povo - História do futebol em Portugal», da autoria de João Nuno Coelho e Francisco Pinheiro, foi então que e passamos a citar - «o inesperado aconteceu. Ao voltarem para o balneário, os estudantes deparam com algo perfeitamente inverosímil: numa mesa de massagista repousava o cadáver de um adepto Portista que morrera vítima de ataque cardíaco na bancada, tapado com a bandeira do FC Porto. Os jogadores da Académica ficaram estupefactos, sem reacção. Até que um deles terá afirmado: Eles puseram aqui o morto para nos impressionarem, mas não nos impressionam nada, porque lá no hospital de cadáveres tratamos nós todos os dias».
Como acrescentaram os autores de «A Paixão do Povo - História do futebol em Portugal», nunca saberemos até que ponto esta visão macabra terá afectado os conimbricenses na Segunda parte da decisiva partida. A verdade é que o FC Porto alcançaria a desejada vitória e o título nacional. «Resta saber se o morto terá tido algum mérito nessa proeza
».
Mérito teve, de certeza, Hernâni. Com uma calma olímpica transformou o penalty (sem contestação) de que a equipa beneficiou e iniciou os festejos que a chegada do segundo e terceiro golos transformou no primeiro grande abraço entre o Porto Clube e o Porto - Cidade.
Nomes do título? Acúrsio, Pinho, Carlos Duarte, Eleutério, Gastão (brasileiro), Gonçalves (brasileiro), Hernâni, José Maria, Miguel Arcanjo, Monteiro da Costa, Osvaldo Cambalacho, Pedroto, Perdigão, Henrique Sá Pereira, António Teixeira, José Valle, Virgílio e esse enorme goleador brasileiro chamado Jorge de Souza Matos, mas que «acudia» pela alcunha de uma ave pernalta brasileira com nome singular Jaburu.
Um negrão desajeitado mas goleador, que morreu pobre e macambúzio, atropelado em Copacabana, e que, só à sua conta, essa época, em 28 jogos (23 para o campeonato e 5 para a Taça de Portugal) facturou por 29 vezes (22+7). Um ídolo tamanho, que, numa das confeitarias da nossa nobre e leal cidade invicta, o bolo-rei natalício não tinha a tradicional fava. Tinha antes (como se conta no «Livro de Ouro do FC Porto» publicado pelo «Diário de Noticias») «entre as fatias recheadas um bonequinho preto que era o encanto da catraiada pela festa do nascimento do Menino Jesus: o Jaburu».
Mausoléu em Montemor-o-Novo
Passemos, agora, ao mausoléu. Não ao do FC Porto, no cemitério do Prado do Repouso, de todos conhecido, mas ao de Montemor-o-Novo. Perguntará o leitor e que tem o FC Porto a ver com ele?
Directamente
nada. Indirectamente, alguma coisa.
Como veremos, certamente que o nome de Lipo Herczka não será, de todo, desconhecido para muitos dos nossos fiéis leitores. Já nele aqui falamos em crónica anterior, quando passamos em revista os treinadores estrangeiros que treinaram o nosso clube.
Basta recuarmos ao princípio dos anos 40 (como atrás escrevemos) para o encontramos.
O húngaro Lipo Herczka foi um treinador do mundo com passagens por Alemanha e Espanha (Real Madrid, Athletic de Bilbao, Hércules de Alicante e Real Sociedad).
Em Portugal, treinou não só o Benfica e FC Porto, como, entre outros, a Académica de Coimbra, o Vila Real, o Portimonense e o União de Montemor, o clube da cidade onde viria a falecer. No FC Porto (assinou em 18 de Março de 1943) não foi feliz. Semi-finalista da Taça de Portugal e sétimo classificado no Campeonato Nacional na época em substituiu Miguel Siska (1942/1943), o treinador húngaro nada relevante conseguiu para o clube na época seguinte, sob a responsabilidade da Direcção presidida por Luís Ferreira Alves foi quarto classificado no campeonato e ficou-se pelos quartos-de-final da Taça de Portugal, eliminado aos pés do Estoril Praia. Ainda sobreviveu na época seguinte (1944-45), em Direcção presidida por Cesário Bonito, mas, não tendo superado a fasquia anterior (voltou a ser quarto no campeonato e eliminado da Taça de Portugal logo nos oitavos-de-final), Lipo Herczka deixou o FC Porto no final da época (entrou Joseph Szabo), rumando ao Portimonense, clube que levou à fase final do Campeonato Nacional da Segunda Divisão, com a taluda da subida a sorrir ao Estoril Praia.
Fixou-se em Montemor-o-Novo e ali faleceu. A 10 de Novembro de 1951 é «inaugurado» o mausoléu de Lipo Herczka, no qual, sempre que a Montemor-o-Novo se desloca, o Portimonense deposita flores, tal como o FC Porto faz com Pepe quando se desloca ao Restelo.
Pensamos que este é um facto desconhecido para a maioria da família Azul e Branca. Encontramos as referências no livro que com frequência vimos citando («A Paixão do Povo - História do futebol em Portugal») e no site oficial do Portimonense. Um bom motivo para que o FC Porto, agora conhecedor do facto, em próxima deslocação ao Alentejo, preste a sua homenagem a uma figura que não se pode dissociar da sua história. Fica a sugestão.
As passagens meteóricas de Fandiño e Amaury
Dezassete épocas separam a presença de Fandiño (1948) e Amaury (1965) no FC Porto.
Um (Fandiño) foi dos primeiros argentinos a jogar no nosso clube (diríamos mesmo que antes dele apenas se exibiu, a partir de 1936, Reboredo). Outro (Amaury) foi um craque de estalo, um dos grandes jogadores brasileiros que a nossa história consagra.
Um e outro tiveram um ponto em comum quase tão depressa chegaram como partiram. Por inadaptação? Não. Por talento! Sim. Fandiño (Francisco Sixto Fandiño) estreou-se na época de 1948-49 pela mão de Alejandro Scopelli, mas não chegaria a fazer uma dúzia de jogos (8 para o Campeonato e 3 para a Taça, com dois golos apontados, um em cada prova). Transferido do Grémio de Porto Alegre por 20 notas de conto, estreou-se a 3 de Outubro frente ao Sporting de Braga. Antes do final da época deixou o clube e
ingressou no Barcelona.
Amaury (Amaury da Silva) chegou ao Porto a 16 de Junho de 1965 para integrar o plantel comandado pelo seu compatriota Flávio Costa. Contratado ao Flamengo por 1960 contos, Amaury integrou, juntamente com o seu patrício Valdir, um plantel formado por Américo, Rui, Atraca, Bernardo da Velha, Carlos Baptista, Carlos Manuel, Custódio Pinto, Ernesto, Festa, Eduardo Gomes, Jaime, Luís Pinto, Manuel António Naftal, Nóbrega, Paula, Pavão, Rolando, Sucena, Valdemar e Alípio Vasconcelos.
Apenas suplantado no tiro ao golo por Manuel António (10), Amaury disputou 19 jogos para o campeonato para o Campeonato (7 golos), oito para a Taça de Portugal (1 golo) e três para a Taça das Cidades com Feira (Stade Français e Hannover 96). No final da época, Amaury representou uma considerável mais-valia para as finanças do clube, ao transferir-se para o Santos (de Pelé) por 2400 contos.
Vimo-lo jogar várias vezes e o seu futebol, simultaneamente fantasista e acutilante, sempre nos deliciou. Nascido a 6 de Março de 1942, Amaury, se ainda for vivo (o que desconhecemos) terá 69 anos. Celebrava o seu aniversário no mesmo dia do guarda-redes Américo, que no passado dia 6 de Março completou 78 anos.
Luís Cesar
in «Revistas dos Dragões» Fevereiro de 2011