Golpe de Geraldão e o guarda Abel
De crise nas Antas se começou a falar com a entrada de novo ano. Correram notícias de ordenados e prémios em atraso, de dívidas a Branco e a Rui Águas que debandaram em busca de novos rumos, outros rumos. Reinaldo Teles negou tudo. Asseverou que Branco até recebera mais do que lhe era devido, por uma questão de gratidão. A Águas respondeu com ironia. Ácida. «Se não fosse o F. C. Porto, se calhar, a esta hora, o Rui Águas ainda estava a ganhar 300 contos por mês. Agrada-me ver a transformação que sofreu. Passou até a ser uma pessoa muito extrovertida. Mas compreendemos. Por meio milhão de contos não pode limitar-se a marcar golos... Tem de dizer algo...»
Na berlinda também os incidentes que infernizavam digressões do F. C. Porto. E os rumores da estratégia dos dragões do ódio. Com capangas ou talvez não. E sobre tudo isso metralhou Reinaldo Teles: «De isso se fala, de facto, e de pistolas, metralhadoras, guarda-costas, mas a verdade, porém, é outra e o nosso presidente é que tem sido sistematicamente agredido, sem quaisquer hipóteses de defesa. Logo, de duas uma: ou os capangas existem na imaginação de alguns D. Quixotes do nosso futebol ou então precisamos urgentemente de renovar o pessoal devido à sua ineficácia.» Lapidar.
No campo o F. C. Porto continuava de vento em popa. Para Artur Jorge o segredo era de... mentalidade. «Nas Antas deixou de haver desculpas parvas! Também por isso tem quase sempre sido campeão...» E ainda sobre a vitória de Viena, na Taça dos Campeões Europeus, como que traçando o paralelo, levantou o véu e revelou: «Quando fomos campeões da Europa o ambiente na equipa era muito mau. Importantíssimo é que hoje já não há no F. C. Porto quem maltrate os colegas jovens e lhes faça a vida negra...e quem, entre tantas coisas, urine no chão dos balneários e da varanda do quarto sobre as pessoas que vão a entrar no hotel.»
Maus ventos pela Luz. Zangaram-se os compadres e... Diamantino, em hora de grandes e quentes revelações, atacou: «Gaspar Ramos não tem competência para gerir o futebol de um clube tão grande como o Benfica. É ou não é incompetência deixar sair o Rui Águas por dez tostões, dizendo dele o pior possível, para, depois de engolir alguns sapos, ir buscá-lo por dez tostões? As pessoas não pensem que eu esperava ficar no Benfica, por esmola, até aos 40 anos. Não, mas também posso dizer com muita clareza que se quisesse lá ficar bastava fazer o que Gaspar Ramos queria.» Ataque ainda mais cerrado: «A minha saída do Benfica continua envolvida em muita falsidade e mentira. E envolveram no processo um homem que pouco ou nada tem a ver com a situação: João Santos. Chocou-me a arrogância com que falaram sobre a minha dispensa, mais parecendo que era um criminoso. Se calhar o meu crime foi ter sido jogador do Benfica desde 1977. Falaram e agiram como se não houvesse um contrato para cumprir. Algo que eu sempre fiz, mesmo quando ganhava 300 contos por mês. E não foi por isso que deixei de jogar, refugiando-me em pseudolesões.»
Valdo, a greve e os dez mil contos, Madjer e os sorrisos amarelos
Poderia ser um remoque a Valdo. Que não muito tempo depois saltou a terreiro em defesa da sua honra beliscada: «Mesmo zangado nunca fui grevista. Agora, nesta paragem do Campeonato, nem coloquei a hipótese de me deslocar ao Brasil, com medo de que o Estádio da Luz viesse abaixo. Não reclamo nenhum estatuto especial para mim e para o provar até vou começar a aparecer nos treinos aos sábados, nem que seja de chinelos. É claro que fiquei agitado e perturbado, porque quando a Fiorentina me quis contratar, dando-me cerca de 10 mil contos por... mês, o que estava em causa era a minha independência financeira. No entanto, nunca inventei lesão. Pelo contrário, ninguém consegue imaginar os sacrifícios que já fiz pelo Benfica! Agora só quero que me deixem em paz para jogar a bola, porque estou disposto a cumprir o meu contrato.»
«Madjer é inegociável.» Era a resposta de Pinto da Costa ao canto de sereia lançado (outra vez) de Valência. O argelino aquiesceu: «Fico muito contente com o manifesto de confiança do presidente, mas, infelizmente, isso não me dá garantia de jogar, não é Pinto da Costa quem faz a equipa.» Artur Jorge continuava a condená-lo a insuportável sabatina. Por uma questão de princípio: «Quem teima em jogar como quer e não como eu quero... não joga. E um jogador que diz que tanto lhe faz jogar como não diz tudo, mas espero que Madjer mude a sua atitude.» E o homem-do-calcanhar-de-ouro, de orgulho ferido, não calou o desabafo: «Se eu nem no banco do F. C. Porto tenho lugar isso só dá para rir.» Mas como o F. C. Porto continuava a ganhar...
No final de Janeiro confirmaram-se os rumores. Por unanimidade, a Direcção do F. C. Porto decidiu: Geraldão nunca mais. Pinto da Costa descobrira que o brasileiro-dos-livres-decisivos assinara um contrato-promessa com o Benfica. A defesa amargurada do defesa proscrito: «É impossível ir para o Benfica e não quero ver-me transformado em vilão. Não tenho nada com o Benfica ou com o Sporting, o meu futuro passa pelo Brasil.» E, por isso, já nem sequer foi convocado para o jogo com o Boavista. No Bessa. Onde o F. C. Porto deixou um ponto. O Benfica não aproveitou o percalço. E empatou em Penafiel, igualmente a uma bola. Gaspar Ramos voltou a atacar: «Ou se aposta na mudança ou será a desgraça do futebol.» Descabelado estava por o relvado ter sido encharcado. «Tal era o charco que, sem que nos apercebêssemos disso, deve ter caído um dilúvio em Penafiel.»
E, perdoado, Geraldão regressou
Na jornada seguinte, já com os portistas em contrapé, órfãos de... Geraldão, o Benfica reassumiu a liderança do Campeonato, beneficiando do empate do F. C. Porto nas Antas, com o Belenenses. Artur Jorge lamentou: «O F. C. Porto não esteve bem, jogou muito abaixo do necessário para vencer o último classificado. Logo...»
E Madjer continuava inactivo. Artur Jorge tentou esgrimir os seus méritos de psicólogo, ante a ameaça de tempestade. «Temos de fazer das tripas coração para ganhar o muito que queremos ganhar. Geraldão é assunto encerrado, não está aqui, temos de contar com quem está, porque não vale a pena pensar no D. Sebastião que, se calhar, nunca mais virá...»
Entretanto, em Belo Horizonte, «A Bola» descobriu Geraldão. Que nem às paredes se quis confessar. Contudo, divulgou-se o texto do seu contrato paralelo com o F. C. Porto. E numa cláusula dele se pôde desfazer o mistério: assentara-se que a troco de 200 mil dólares de indemnização Geraldão poderia rescindir contrato com o F. C. Porto. Desmentidos não foram, contudo, os rumores de que Jorge de Brito já lhe passara um cheque de 200 mil dólares. Subitamente, a 10 de Março, Geraldão regressou às Antas. E Artur Jorque aquiesceu: «A equipa sentiu a sua falta e estremeceu. Com ele temos mais hipóteses de revalidar o título.» E adiantou mesmo poder contar com ele no jogo que se seguia, contra o Nacional, que, na primeira volta, até vencera nas Antas...
Geraldão jogou. E o F. C. Porto venceu por 3-2. Artur Jorge reconheceu: «Acabámos por ter um bocadinho de sorte.» Manuel Oliveira, treinador dos madeirenses, queixou-se: «O empate era o resultado mais justo, porém apareceu aquele penalty que nos fez perder um ponto. Baltasar atirou-se para o chão, ele é um rato dentro da área, Juvenal Silvestre assinalou a falta e resolveu o jogo.» Mas o Benfica não desarmou. E ganhou na Amadora, por 4-1. Com uma segunda parte de luxo. Melancólico e ainda a amargar a angústia europeia, o campeão empatou em Famalicão. A zero. E Artur Jorge queixou-se de Jorge Coroado. «Eram sempre cortadas as jogadas na grande área.» O Benfica venceu no Funchal, o Nacional, por 2-0 e assim se desenvencilhou do F. C. Porto. À 28.ª jornada, 50 pontos para os benfiquistas, 49 para os portistas, 44 para os sportinguistas.
No sprint para o título faltavam apenas nove passadas para a glória ou para a mágoa. O F. C. Porto «cheio de remendos» bateu o Braga por 2-0. O Benfica despachou o Setúbal por igual marca, mas Diamantino, no regresso à Luz, iconoclasta, colocou o dedo em algumas feridas: «O Benfica marcou dois golos, mas no primeiro a bola foi centrada de fora pelo Pacheco, o segundo resultou do penalty do costume. Jogámos com seis defesas? Pois, pois... O Benfica jogou com quatro ou cinco avançados, valeu que eles se atrapalharam uns aos outros.»
A 20 de Abril, na jornada número 33, surgiu em Alvalade um F. C. Porto aparentemente remoçado. Como se a crise fosse peleja já vencida. O Benfica contava com um jeitinho do Sporting, mas... Os pupilos de Marinho Peres até começaram a partida com o F. C. Porto com o pêlo na venta, mas, no último minuto da primeira parte, um deslize de Ivkovic permitiu a Jorge Couto o golo (fabuloso, em chapéu quase do... meio campo) que não apagou a luz do sonho. A defesa do guarda-redes na mágoa do fiasco: «Tive uma grande infelicidade, quis lançar o contra-ataque, mas o pontapé saiu-me mal. É dos tais golos que se fazem uma vez na vida.» Marinho Peres, de rosto fechado: «Só temos de nos queixar de nós próprios.» Sousa Cintra descabelado: «Esta foi a vitória do sr. Fernando Marques. Telefonei-lhe dizendo que não queria o Bento Marques, que nos tinha prejudicado em Chaves de uma forma escandalosa e nomearam-no para provocar o Sporting. Bento Marques devia ser irradiado, roubou-nos dois penalties claros e um golo limpo.» Em penalties perdoados houve empate e o F. C. Porto até se podia queixar de ter sofrido o primeiro erro de Bento Marques, que deixou em branco uma grande penalidade sobre Kostadinov ainda mal a procissão saíra do adro...
Oito dias depois, o «dia D» do Campeonato. Na véspera, remoques nas Antas, à espera do Benfica. Artur Jorge: «Tendo em vista o passado recente e menos recente do futebol português, Carlos Valente não deveria ter sido nomeado para o F. C. Porto-Benfica.» Octávio Machado: «O Benfica já não precisa de se preocupar com a água, já contratámos uma empresa de aspiradores para sugar a relva e, com um bocadinho de jeito, ainda pedimos emprestado o tapete vermelho de veludo por onde costuma passar o Papa.» Hernâni Gonçalves: «O Benfica quer manobrar a arbitragem, quer pressionar os árbitros, foi por isso que se pediu a cabeça de Lourenço Pinto.» Premonitório, Eriksson, à partida em Santa Apolónia: «Adeus, até ao nosso regresso, que nós voltaremos campeões.»
...E o Benfica venceu por 2-0, com dois golos de César Brito, a «arma secreta» de Eriksson, e ficou com o título no bolso. Artur Jorge entre a ironia e o azedume: «Hoje Eriksson é óptimo e eu não presto para nada.» Calculismo de Toni: «Vitória justa e feliz, mas ainda é cedo para festejar.»
Dramática a saída de Carlos Valente dos balneários. Lívido, como se tivesse debandado de uma câmara de tortura. Cambaleante, amparado por dois polícias, insultos em farândola, o árbitro metido, quase à pressão, num Opel Kadett Dream alugado à Avis, que furou por entre gente que lhe gritava impropérios. Havia senhoras que choravam, juras de vingança e desabafos de ódio, Pinto da Costa abeirou-se da cerca metálica azul do Departamento de Futebol, baixou a cabeça, lamentou o destino.
O cheiro esquisito dos balneários e a réplica de Pinto da Costa
Valente apanharia o comboio para Lisboa em... Aveiro, chegando à estação ainda de rosto desgastado, negando ter sido agredido, mas prometendo «ir dormir muito bem, de consciência tranquila». Já em Lisboa, euforia e festa no aeroporto. Ave César ou Brito transformado em herói. «Fui às Antas buscar o ouro que lá tinha deixado na época anterior. Na minha terra a festa foi incrível. O meu sogro, que tem um café, pôs um barril de cerveja à disposição, tudo à borla, tudo para se comemorar o meu feito.» E queixas de João Santos: «Houve cenas incríveis nas Antas, de intimidação à equipa e aos apoiantes. Os nossos jogadores viram-se obrigados a equipar-se nos corredores, pois nos balneários era impossível, dado que estavam impregnados de um cheiro horrível. Os portistas criaram um clima de pânico, lançaram o boato de que o árbitro tinha almoçado com o Benfica, encharcaram as faixas laterais, pontos onde o Benfica poderia atacar, e no final ainda aquelas cenas de pancadaria, com Jorge de Brito, Raul Fonseca, Ilídio Trindade, Alcino António e Fezas Vital agredidos. No fundo, ambiente de terror, apenas porque os dirigentes do F. C. Porto, perdido o Campeonato, ficaram em pânico.»
Cada jogador do Benfica recebeu pela vitória nas Antas... 1500 contos. Do seu próprio bolso, Jorge de Brito ofereceu a cada um mais 500. E, num gesto bonito do presidente, 500 contos foram dados, também, a Dias Graça, guarda-redes que o destino destruiu numa curva traiçoeira de uma estrada, num dramático acidente de automóvel. Mas o jogo não acabara ali. Antes pelo contrário. A tragicomédia arrastou-se. Pinto da Costa, acusador, em rescaldo escaldante: «Carlos Valente teve um comportamento provocatório, chegando a insultar o banco do F. C. Porto.» Reinaldo Teles: «Carlos Valente teve um comportamento anormal e despropositado. Por exemplo, quando me dirigi à sua cabina para fazer a entrega da ficha do jogo, perguntou-me de uma forma acintosa se era o delegado ao jogo. Fiquei pasmado, mas não demorei muito tempo a compreender este comportamento.» Hernâni Gonçalves peremptório: «O cerne da questão era o espectro de, após o investimento de milhões, o Benfica não ganhar nada numa época, depois de outra sem nada ter ganho. Era a catástrofe, o hara-kiri de uma Direcção. Agora entendo porque os benfiquistas proclamavam aos quatro ventos que o Campeonato não chegaria ao fim se não fossem campeões.»
Entretanto, no acto de posse dos dirigentes do Salgueiros, o que haveria de ficar famoso guarda... Abel ter-se-ia abeirado de João Santos, presidente do Benfica, ameaçando-o de morte: «Aqui ou em Lisboa hei-de matá-lo.» Trajando à civil, seria barrado por Pinto da Costa, que o demoveu, dizendo-lhe que não era aquele o local certo para tratar dos seus problemas com João Santos.
João Santos queixou-se à Polícia de que o guarda Abel o queria matar
O presidente do Benfica, em pânico, apresentaria queixa à PSP, por... «tentativa de agressão e ameaça de morte». E mais diria sobre Abel e sobre os incidentes (ainda quentes) das Antas: «Esse senhor, com o seu costumado ar arruaceiro, protagonizou desacatos e desmandos, nas instalações das Antas, durante o F. C. Porto-Benfica. Não sei se o homem tem protecção de alguém, o que é certo é que os meus colegas de Direcção desceram dos camarotes sem ser molestados pelos adeptos do F. C. Porto, mas, ao tentar entrar na cabina do Benfica, foram impedidos de fazê-lo por esse senhor, que disse que ninguém passaria, que estava a cumprir ordens de Pinto da Costa.»
Fezas Vital na entreajuda, terçando armas contra o famoso Abel: «Esse guarda Abel impediu-nos a entrada nos balneários, desrespeitando o vice-presidente José Guilherme Aguiar, dizendo que se insistíssemos em entrar isso seria encarado como provocação e responderiam à porrada. Tentámos sair dali, mas começaram logo a dar-nos porrada. Jorge de Brito e eu fomos os alvos mais fáceis. Fomos dos que mais apanharam. Sobretudo pontapés. Tenho as pernas todas marcadas. O guarda Abel e os seus amigos estavam ali com o propósito de nos agredir. O que nos valeu foi uma ambulância que estava estacionada ali. Refugiámo-nos nela, deitando-nos no chão, para evitar as pedradas que caíam. Assim permanecemos durante cerca de 45 minutos.» Ao solicitar ao Ministério da Administração Interna inquérito aos acontecimentos do jogo que decidira o título, os dirigentes do Benfica consideram «esquisito e grave terem sido pontapeados dentro da zona protegida pela polícia fardada». A novela prometia. Com Dias Loureiro também no palco.
A Taça da revolta e... Geraldão no PSG
O F. C. Porto acabaria por ganhar a Taça de Portugal e, no Jamor, Octávio Machado voltou a atacar, falando das «jogadas subterrâneas» do Benfica tentando salvar a face e a cabeça dos seus dirigentes, que «não suportariam a angústia dos sócios por dois anos sem ganhar nada, apesar dos milhões investidos», denunciando as «manobras com os árbitros» e a... «contratação à má fila de um líbero que foi um autêntico ponta-de-lança». Era, obviamente, remoque a Geraldão.
Geraldão acabaria por não ir para o Benfica. Para desencanto de Jorge de Brito, que tudo fizera para que tal acontecesse. Artur Jorge levá-lo-ia para o Paris Saint-Germain e permitiria que o F. C. Porto ainda arrecadasse cerca de... 80 mil contos pela cedência da sua carta internacional. Era a vingança servida fria. À Pinto da Costa. Os benfiquistas contra-atacaram e anunciaram que o jogador devia... 123 mil contos ao clube. Em Paris, Geraldão negou: «Não houve nenhuma assinatura por cem mil contos, houve, de facto, uma por 23 mil, mas num... papel branco. E estou de tal modo disposto a restituir o dinheiro que essa verba de 23 mil contos ou de 50 mil dólares, se se quiser, está depositada num banco, em Portugal. Devolverei o dinheiro quando o Benfica quiser e com os juros correspondentes.»
in «abola»