O «palhaço» e as artimanhas
Pedroto abriu guerra feroz contra o seleccionador nacional. A Mário Wilson chamou «palhaço» e, depois, coisas piores. Quando soube do castigo, fez chacota. Ao seu jeito!
Em Fevereiro de 1979, António Oliveira recebeu, por intermédio de António Simões, proposta tentadora do «soccer». Equipa de Dallas oferecia-lhe 43 mil contos pelo seu concurso. Anunciou: «Fiquei no F. C. Porto porque quis ser campeão nacional, mas agora podem oferecer-me o dinheiro que quiserem que sairei.»
Por essa mesma altura, João Rocha acenou-lhe com 25 mil contos por um contrato de quatro anos e Oliveira deu sinais de poder aquiescer. Mas, contra todas as expectativas, em operação-relâmpago, o Bétis fez de Oliveira o mais bem pago futebolista da sua história: 36 mil contos de prémio de transferência, pagos durante três anos, 8 mil contos anuais de «luvas» e um ordenado mensal de 60 mil pesetas.
Já em Sevilha, desconcertantemente, Oliveira anunciou: «Estava disposto a perder 15 mil contos para ficar no F. C. Porto. Dois dias antes de assinar pelo Bétis ainda esperava, ansiosamente, fumo branco das Antas, só que não poderia esperar mais.» Ninguém acreditou até porque não muito antes tinha dito que não ficaria no F. C. Porto por dinheiro nenhum mas pronto...
Pedroto perdia mais uma das suas melhores armas, mas não arrefecia o ânimo de lutador. Antes pelo contrário.
PC na manifestação da Campanhã
Parecia assente a poeira em torno da tragicomédia de Outono. Mas não. Quando, num dia pardacento de Outubro, a FPF decidiu suspender José Maria Pedroto por um mês e multá-lo em 500 escudos, por considerar ofensivas declarações suas sobre o seleccionador nacional Mário Wilson, reacendeu-se o rastilho da polémica. O treinador do F. C. Porto fez a sua defesa ao ataque e, outra vez, sob o signo da ironia e da injúria: «Pareceu-me que os dirigentes em fim-de-estação da FPF foram demasiado benevolentes e que os 30 dias de suspensão são castigo ínfimo para falta tão grave. De facto, quando disse que Wilson, como treinador, era um palhaço, ao dar o agrément a um jogo internacional entre uma eliminatória europeia, não tive intenção de ofender os próprios palhaços. Toda a gente sabe que, normalmente, são brancos e não negros e se porventura mais morenos até se pintam de branco. Como se pensou que houve intenção de injuriar, em vez de 30 dias deveria ser castigado em 30 anos. Parece-me também que a multa de 500 escudos é demasiado rigorosa e uma prepotência. É que 500 escudos, mesmo inflacionados, são sempre 500 escudos e julgo que não se deve tirar assim dinheiro a um trabalhador, mesmo quando ele não é abrangido por contratos colectivos...»
Que se passou? A FPF aceitou defrontar a Espanha, em Vigo, a oito dias do Milan--F. C. Porto para a segunda eliminatória da Taça dos Campeões, e Mário Wilson, com algum espírito de provocação (convenhamos), convocou nove jogadores portistas para a partida. Nunca tal se verificara. Pedroto abespinhou-se. E reagiu. À sua maneira. Pinto da Costa saltou, lesto, em seu apoio e asseverou que o F. C. Porto não dispensaria um único dos seus jogadores seleccionados.
A FPF manteve a convocatória. Em dois tempos e em dois espaços. Os jogadores do F. C. Porto deveriam esperar a comitiva às 14 horas do dia 24 de Setembro, em Campanhã. Na estação, em vez de jogadores, uma multidão exaltada e agressiva, em assuada e tumulto, gritando imprecações a Wilson e demais homens da FPF. No meio dela, em jeito de general no simbolismo da revolta, Pinto da Costa. Assim se via a força de PC.
Oito dias depois do famigerado jogo com a Espanha, nas Antas, para a Taça dos Campeões, o F. C. Porto empatou a zero com o Milan. Pedroto disse apenas que «com arbitragem semelhante» ganharia em Milão. E sem precisar de árbitro assim, em San Siro o F. C. Porto ganhou por 1-0, graças a um golo de Duda. Pedroto vaticinou, em júbilo: «Finalmente, arrancámos para um Porto de aura europeia.»
Adversário que se seguiu: Real Madrid. Vitória nas Antas por 2-1. Rodolfo queixou-se de má sorte: «Podíamos ter feito três ou quatro golos, mas...» Em Madrid, derrota por 0-1. Fatal. Pedroto disparou: «Foram os dois árbitros que nos eliminaram.» Boskov, treinador madrileno, retorquiu: «Culpar o árbitro não é digno de uma equipa com a categoria do F. C. Porto.»
No primeiro domingo de Dezembro, o Sporting bateu, em Alvalade, o F. C. Porto por 1-0. Pedroto voltou a usar, amargamente, o discurso das derrotas que considerava injustas ou espúrias, jurando que António Espanhol deixara uma grande penalidade contra o Sporting por marcar. E quase toda a gente achou que sim, mas...
Pinto da Costa enfureceu-se e prorrompeu em denúncias contra «um funcionário sportinguista que também era secretário da FPF», César Grácio, esse mesmo, que «nomeara para o desafio um árbitro... sportinguista». E apelidou-o de «abutre». Talvez nas palavras doridas de Pinto da Costa houvesse pressentimento de que essa derrota acabaria por ser fatal para o F. C. Porto...
Em Fevereiro de 1980, António Oliveira sentiu, em Sevilha, esse invisível nevoeiro de saudade que se evola da alma dos homens tocados pelo sentimentalismo. E, como na rábula do filho pródigo, na dor da nostalgia, decidiu colocar ponto final na falhada experiência espanhola no Bétis. «Estrela» que, de súbito, empalidecera, a contas com lesão que o espojou, admitiu até pagar do seu próprio bolso para regressar ao F. C. Porto! «A minha visão do Mundo é nitidamente provinciana foi a conclusão a que cheguei depois de ter vivido seis meses de solidão espiritual. O meu regresso dá-se porque não desejava outra coisa e volto a perder muito dinheiro.» Contas feitas pelo seu irmão Joaquim Oliveira apontavam para um prejuízo assumido de cerca de 35 milhões de pesetas. Ou mais, porque o Vasco da Gama lhe oferecia contrato igual ao do Bétis, carro de luxo e vivenda com piscina em bairro chique do Rio de Janeiro. Voltou a dizer não. Para libertar Oliveira, a Direcção do Bétis exigiu uma indemnização de 6000 contos ao F. C. Porto. Américo de Sá franziu o sobrolho, Oliveira ficou à beira de um ataque de nervos, foi nessa altura que ele se predispôs a pagar esse valor.O gesto sensibilizou os directores sevilhanos, que em vez dos 6000 contos aceitaram a desvinculação, exararam-lhe um louvor e desejaram-lhe muitas felicidades. E para que pudesse jogar contra o Benfica, foram a correr tratar do envio para a FPF do certificado internacional...
Oliveira chegou, jogou e o F. C. Porto venceu, parecendo em passada estugada a caminho do «tri».
Mais quente ainda a euforia quando, em Setúbal, os portistas ganharam e se isolaram no comando. Nuvem negra no horizonte, apenas a lesão de Duda: contusão na região cervical, com perturbações de foro neurológico, que, entre outros contratempos, o impediria de andar durante 15 dias, chegando inclusivamente a temer-se pela impossibilidade de voltar a jogar futebol. Na primeira semana de Março, inesperadamente, os pupilos de Pedroto entregaram o ouro ao bandido, ao empatarem, nas Antas, com o Rio Ave. Mas ainda poderia resgatá-lo, pelo que...
A 10 de Abril, Artur Jorge combinou regressar ao F. C. Porto para tomar conta do banco, ao fim de 15 anos de ausência e na sequência da renovação do contrato com José Maria Pedroto. Ambos os contratos eram válidos até final de Julho de 1982. «O facto de o F. C. Porto se ter lembrado de mim para ocupar tal cargo é uma honra» confessou Artur Jorge. O aval de Pedroto: «Artur Jorge é um treinador com uma bagagem de conhecimentos extraordinária. Não vejo, realmente, neste momento, no futebol português melhor escolha.» Na corrida perdeu o Benfica, que tentou tudo, até ao fim, para obter a colaboração de Artur Jorge, tendo avançado com condições concretas para a assinatura de um contrato.
Artur Jorge, no culminar da sua carreira de futebolista (cinco épocas no F. C. Porto, quatro na Académica, seis no Benfica e três no Belenenses), sofrera fractura de uma perna e, no período de inactividade, longo, de três meses, leu muito, especialmente Eça de Queirós, e pensou mais. Depois dessa profunda reflexão, em 1979, optou pelo caminho a seguir em direcção ao futuro. Tinha 34 anos. «Ser treinador é um pouco ser cavaleiro andante, mas nem o curso de Letras que já tenho me fará mudar de ideias. Vou fazer um curso no estrangeiro, nem que seja por minha conta, e serei treinador de futebol.»
Escolheu Leipzig, na (então) RDA. O curso teve a duração de nove meses, constando de quatro disciplinas: Futebol, Medicina Desportiva, Biologia Desportiva e Teoria e Metodologia do Treino. Não era, portanto, um desses cursozinhos que se fazem para alguém ter direito a diplomas. Entre 32 alunos estrangeiros, Artur Jorge foi o único a tirar a nota máxima e na qualidade de aluno brilhante teve convite para voltar, a fim de fazer o doutoramento. Não precisou. Mas não seria ainda daquela que iria para as Antas. Por causa de um histórico «Verão quente» em que se tentou lançar Pedroto e Pinto da Costa para a fogueira. Ele foi por arrastamento...
Estranho golo de Manaca
Talvez o néctar do título tivesse adormecido o campeão. Nem sequer foi preciso que o Varzim fosse gigante para que o F. C. Porto, em jeito de pigmeu assustadiço, empatasse na Póvoa e, assim, oferecesse em bandeja de ouro o título ao Sporting. Pedroto ainda se deixou enlear nas malhas da ilusão: «Talvez o V. Guimarães roube ao Sporting o ponto que perdemos.»
Mas em Guimarães, na penúltima jornada, morreu, definitivamente, o sonho portista, no golo marcado, na própria baliza, por Manaca.
Pinto da Costa lançou suspeitas de suborno ao ex-defesa do Sporting, que se defendeu assim de rosto macerado pela afronta: «Não fui subornado pelo Sporting, mas estava aliciado pelo F. C. Porto. Com a derrota do Vitória também eu fiquei a perder 100 contos, mais a quota-parte que me coubesse de um jogo com o F. C. Porto com a receita a dividir pelos jogadores.»
Pedroto lançou a toalha ao tapete, espumando injúrias: «Falhámos o tri porque nos negaram três penalties, um em Alvalade e dois nas Antas, contra o Sporting.»
Ainda antes de correr o pano sobre o Campeonato, no Porto surgiram panfletos apócrifos desafiando a Polícia Judiciária a prender Manaca, João Rocha e Valentim Loureiro e em repto de justiceiros de orgulho ferido clamavam os seus autores: «É preciso acabar com os mafiosos do futebol e fazer com que a imprensa, a rádio e a TV de Lisboa deixem o País!» Insistentes galopavam os rumores de que, após a partida com o Sporting, Manaca e Tozé se tinham envolvido em pancadaria, por o companheiro o ter acusado de beneficiar o Sporting, insultando-o e por isso Pinto da Costa não calava a voz quente do protesto e do desejo de que ao menos a Justiça investigasse. Debalde. De Alvalade, enfim, uma reacção, através de Paulo de Abreu, um dos vice-presidentes de João Rocha: «As considerações que Pinto da Costa anda a bocejar relativamente ao golo marcado por Manaca e os falsos contactos mantidos pelo futebolista e por elementos sportinguistas, que a proverbial irresponsabilidade de Pinto da Costa leva a não identificar, imporiam uma tomada de posição que o Sporting, tratando-se de quem se trata, não deve assumir.» E com teor assim as cortinas de fumo (pelo menos essas) permaneceram no ar e nunca mais se desfizeram.
in«abola»