Uma experiência de vida de quem viveu o 25 de Novembro e dias anteriores, encontrei este testemunho em papéis que guardei até hoje.
Não menciono o autor por razões pessoais e o texto que coloco é bastante mais curto que o original mas omiti diversas partes por achar por bem não o fazer, muitos já morreram e a história seria muito mais violenta.
Antes do 25 de Novembro tivemos o chamado golpe Palma Carlos, o spinolista, golpes de extrema direita e o 11 de Março.
Num espaço de 1 ano e seis meses, após o 25 de Abril, tivemos diversos episódios só que quem mandava na revolução era o Conselho da Revolução sob a direção do chamado grupo dos 9 e prevaleceu a democracia.
25 de Abril tinha como lema democratizar, liberdade de expressão e descolonização. Cada força política tinha a sua interpretação disso, o da liberdade da expressão e descolonização estavam realizados (mais este), o democratizar segundo os parâmetros da chamada hoje democracia liberal só aconteceu verdadeiramente após o 26 de Novembro de 1975.
Aqui vai o texto;
A data ficou a marcar a história como o (definitivo) regresso de Portugal à democracia parlamentar (e ocidental) e ao fim da sua ilusão comunista: 25 de novembro de 1975 – sendo, porém, já a 26 (de novembro de 1975) que o desfecho deu no que deu…
De alvoroço em fogacho se viveram meses e dias anteriores. Por exemplo, a Vasco Gonçalves (ainda Primeiro-Ministro…) apanhara-se-lhe, no frenesim do devaneio: «Não podemos perder por via eleitoral aquilo que tanto tem custado ao povo e à revolução» - e logo surgira Álvaro Cunhal (o líder do PCP) a dar-lhe aconchego: «As eleições não têm nada ou têm muito pouco a ver com a dinâmica revolucionária, Portugal nunca terá uma democracia burguesa».
Sem que o MFA cedesse à pressão, fizeram mesmo eleições, a 25 de abril de 1975 – as eleições para a Assembleia Constituinte. Entre os candidatos surgiram José Maria Pedroto (pelo PPD), Artur Jorge (pelo MDP/CDE) e António Simões (pelo CDS). Sem que nenhum deles conseguisse mandato para São Bento (António Simões consegui-lo-ia, um ano depois, nas primeiras Legislativas) – o PS colheu 37,87%, o PPD 26,39% e o CDS 7,61%.
Ao contrário do que sucedera em 1974, nas comemorações do 1.º de Maio, o PCP (que se ficara pelos 12,46% de votos) proibiu Mário Soares de discursar. Pedindo-se, então, ao FC Porto o Estádio das Antas, no comício que lá fez pela «democracia de verdade» aglomeraram-se mais de 50 mil pessoas – e, arrastadas mais de 100 mil para a manifestação na Fonte Luminosa, apesar de o COPCON ter levantado barragens à entrada de Lisboa, Costa Gomes (o Presidente da República que, na flexão à esquerda, se pusera no lugar de António de Spínola, general de cavalaria que fora grande figura no hipismo) percebeu o destino a mudar:
– O povo já não está com o MFA.
Não, não estava com esse MFA retorcido à esquerda mais radical e, por entre ação exortando à «defesa da revolução, custasse o que custasse», o PCP ainda ensinou militantes a fabricaram cocktails molotov – e, a 12 de setembro de 1975, apagou-se o gonçalvismo (na queda de Vasco Gonçalves de Primeiro-Ministro), sem que, porém, se desfizessem ou desenfarinhassem escarcéus e conspirações.
Tinham sido (no PREC) 452 dias quentes avassaladores – e com José Pinheiro de Azevedo (descendente de judeus de Viseu que, já oficial de marinha, se aventurara ao primeiro curso do Instituto Nacional de Educação Física ) empossado Primeiro-ministro do IV Governo Provisório, o país continuou, pois, a arder...
Horas antes Mário Soares telefonara, impaciente, a Freitas do Amaral avisando-o:
– Está a correr rumor de que se prepara em Lisboa uma tomada de poder pelas forças afetas ao Partido Comunista…
e o que era certo e sabido era que, para 16 de novembro de 1975, se marcara «manifestação no Terreiro do Paço para dar resposta à altura à manif de apoio a Pinheiro de Azevedo».
Da Avenida da Liberdade largou, então, a «manifestação no Terreiro do Paço para dar resposta à altura à manif de apoio a Pinheiro de Azevedo». com betoneiras e tratores de reboque das zonas da Reforma Agrária. Chamando-lhe «manifestação unitária popular», desembocou no Terreiro do Paço e, na mensagem que para lá enviou (para ser lida por um soldado), Otelo Saraiva de Carvalho afirmou que o «Terreiro deixara de ser do Paço, passara a ser do Povo» – exortando, veemente, «trabalhadores e militares» a avançarem para a «revolução socialista». E, em fervor, gritou-se pelo «Camarada Vasco» (o Gonçalves, claro):
– Tu és a muralha de aço!
No RALIS, quartel sob comando de Carlos Fabião, soldados foram a desfile marchando de punho fechado e bradando:
– Juramos estar sempre ao lado do Povo, ao serviço da classe operária, contra o fascismo, contra o imperialismo, pela vitória da Revolução Socialista
e, à «manifestação unitária popular» (e ao mais que se passara antes – por exemplo, trabalhadores da construção civil cercarem-no em São Bento…) Pinheiro de Azevedo respondeu com ato insólito, como esse que se desatou da reunião do Conselho de Ministros pela alta madrugada de 20 de novembro, atirando, aos repórteres que o aguardavam, a afirmação (acirrada):
– Fui sequestrado duas vezes, já chega! Não gosto de ser sequestrado, é uma coisa que me chateia, pá!
Já tinham sido desviadas espingardas automáticas G3 do paiol de Beirolas - e murmurava-se que Otelo o afiançara:
– Estão em boas mãos, nas mãos do povo
e, nesse primeiro dia do governo de Pinheiro de Azevedo em greve, o Conselho da Revolução decidiu substituir Otelo Saraiva de Carvalho por Vasco Lourenço no comando da Região Militar de Lisboa. E foi então que, considerando que Otelo e Fabião, o Ralis e a Polícia Militar, eram entraves à «normalização da crise», Jaime Neves revelou, atroante:
– Os Comandos querem pôr isto na ordem!
Tentado a não fazê-lo, Vasco Lourenço acabou por aceitar o comando da Região Militar de Lisboa – e, chegando-se a 24 de novembro, Ramalho Eanes, Melo Antunes, Vasco Lourenço e Jaime Neves foram a Belém dar conta a Costa Gomes da sua intenção de «repor Portugal na rota da democracia». Fora deixaram, insinuantes, quatro chaimites estacionados.
– Se não me segurassem eu matava-o. Atirei-me a ele, agarrei-lhe o pescoço, sim até o matava... Porque ele, o Costa Gomes, que era o Presidente da República, o Chefe do Estado Maior, não queria assumir nada, a responsabilidade das operações militares, só dizia que os outros eram coitadinhos e por aí adiante. Não, não estava hesitante, estava cheio de medo, cheio de medo…
Morais e Silva, Chefe do Estado Maior da Força Aérea, mandara passar à disponibilidade 1000 paraquedistas da Base de Tancos - e na manhã de 25 de novembro eles ocuparam o Comando da Região Aérea de Monsanto e seis outras bases a Norte, reafirmando-se, em furor, «fiéis a Otelo e ao Copcon, à revolução socialista».
Companheiro de quarto de Henrique Calisto (que já professor de Educação Física jogava futebol no Leixões) no quartel da Polícia Militar (um dos baluartes do COPCON) era José Carvalho que estava, então, a preparar-se para os Jogos Olímpicos de Montreal de onde haveria de sair em brilharete, perdendo por pouco, por muito pouco, a medalha de bronze nos 400 metros barreiras:
– Três dias antes do 25 de novembro tinha recebido dispensa de serviço de comandante do 1º Esquadrão de Instrução de Cavalaria, o Henrique Calisto era comandante do 3º Esquadrão. Como deixara o comando ao capitão Ferreira da Silva, ao ouvir na rádio informação de que os militares deviam regressar todos aos quartéis, regressei... Ainda fui destacado para missão no RALIS, ir ao RALIS saber da sua posição, fui eu e o Calisto num unimogue, bem armados. O Calisto com uma autometralhadora, eu com um lança-granadas antitanque. Ao voltarmos fez-se uma reunião de oficiais com o Campos Andrada, o primeiro comandante, e com o Mário Tomé, o segundo comandante. Por essa altura, a RTP já estava a emitir do Porto – e perante o impasse na nossa reunião, eu decidi voltar para o meu quarto no Centro de Estágio da Cruz Quebrada.nAo descer, à noite pela Calçada da Ajuda, ainda me apercebi de elétricos em jeito de barricada – e no outro dia de manhã, antes de ir para o treino, ouvi na rádio as notícias do ataque à PM, das mortes...
Entretanto, os homens que vão para o Centro de Instrução dos Comandos já deviam ter recebido cada um 500 escudos de subsídio de fardamento, mas o dinheiro não aparece. É então que os futuros instruendos do CIC e o pessoal do Regimento de Artilharia assistem a um episódio protagonizado por um capitão Gonçalves das Neves vulcânico. Consiste em duas cenas de berros nunca antes vistas no pacato quartel. Primeiro, o capitão dirige-se ao primeiro sargento da secretaria. Depois, sobe ao comandante do Regimento. No dia seguinte, o dinheiro emerge das desleixadas gavetas burocráticas e todos ficam equipados.
Foi, pois, com esse espírito que já na madrugada de 25 para 26 de novembro, Jaime Neves (que acabara de ser promovido a tenente-coronel) subiu de chaimite a Calçada da Ajuda, arrastando força para vergar a Polícia Militar e o Regimento de Cavalaria 7. Encontrou, contudo, espalhadas em seu redor, milícias populares armadas de metralhadoras, nalguns casos. A um repórter da RTP, um soldado da PM revelou que o seu regimento distribuíra armas a civis durante a noite…
Populares conotados com os partidos da extrema-esquerda cavaram trincheiras junto às instalações da PM – e, numa das três companhias que Jaime Neves levara para o ataque estava o tenente José Eduardo Coimbra. Ao erguer-se para fora do seu tanque recebeu tiro em cheio, por cima do crachá - e morreu a caminho do Hospital Militar. Sugerindo-se que a bala que matara Coimbra fora disparada por popular escondido no telhado de um andar da Calçada da Ajuda, Henrique Calisto que estava lá, dentro, no quartel da PM, garantiria que não, que o disparo foi de um dos seus instruendos.
Com o furriel Joaquim dos Santos Pires abatido por fogo de metralhadora do Regimento de Cavalaria 7, o cerco ao quartel da Polícia Militar fez-se com os comandos exclamando, em ira: «Vamos vingá-los, mataram-nos dois, mataremos 200 pelo menos!». Jaime Neves pediu-lhe calma e foi essa sua voz de comando que evitou uma barbárie.
Andando-se já pelas 7.20 horas do dia 26 de novembro, os majores Mário Tomé e Cuco Rosa foram convocados para se apresentarem ao Presidente da República - mas um plenário de militares revolucionários da PM determinou que só iriam se Costa Gomes explicasse a razão da convocação. Menos de uma hora depois, Jaime Neves atirou o seu chaimite contra um dos portões, derrubou-o e tomou o quartel do Regimento da Polícia Militar sem um tiro. Ordenando: «Tudo na parada, já!» - perguntou a Mário Tomé (que haveria de ser deputado e líder da UDP) pelo seu comandante e, desconcertante, foi a resposta que colheu: «A última vez que o vi estava debaixo da secretária! O cheiro do perigo tem resultados imprevisíveis. Pode até transformar gigantes em pigmeus...»
Dispersaram os soldados após a rendição, os oficiais da PM ficaram sob prisão durante três dias no próprio quartel. José Carvalho não, que lá não estava quando do ataque, mas Henrique Calisto sim:
– Ao fim desses três dias detido, fui ouvido na Região Militar, mandaram-me para casa. Não, não fui logo desmobilizado, três meses depois ainda estive em Elvas, mas só 15 dias. E aí sim, é que foi o fim, deixei a tropa, fui dar aulas para Santo Tirso. Jogava no Leixões, no Leixões continuei a jogar, a treinador só passaria cinco anos depois, em 1980.
Um dos dois comandos mortos, o José Eduardo Coimbra, era grande esperança do basquetebol nacional. Miliciano na Amadora, jogava no BPM (equipa do banco de Afonso Pinto de Magalhães, o presidente do FC Porto). No Porto se fez o seu funeral – e que quase se transformou em tragédia se contou: que eram aos milhares as pessoas a atravessarem a ponte D. Luís para o último adeus e o que, por isso, a ponte tremeu, chegou a abanar, achou-se que caía.
Logo se soube que Jaime Neves, emotivo, decidira guardar para si a Kalashnikov que o tenente Coimbra usara pela última vez – e na sequência da sua ação, a 28 de novembro, Pinheiro de Azevedo anunciou que o seu VI Governo Provisório voltava à normalidade de funções – e Mário Soares, que se refugiara no Porto, regressou a Lisboa. O novo homem forte do regime não passou a ser Jaime Neves, passou a ser Ramalho Eanes... – e, em 1981, com ele no segundo mandato de Presidente da República, Jaime Neves passou à reserva.
Em África, Jaime Neves comandara a companhia 2045, uma das últimas forças especiais a deixar a guerra colonial - e nela se inspirou para, com mais seis comandos, fundar uma empresa de segurança: 2045, o seu último projeto de vida.