"Apanhei" isto e li e partilho aqui sem comentários pessoais porque precisava de conhecer pessoalmente o local, e ruas adjacentes, e não conheço nem tenciono conhecer. Mas ler não faz mal a ninguém, quem conhecer ou quiser conhecer está terá uma opinião pessoal como é óbvio para além de comentar.
A HISTÓRIA DA RUA DO BENFORMOSO
"Sempre foi casa de imigrantes. Entre operários e varinas, ali conviviam prostitutas e criminosos. Renovou-se a partir de 2011 e hoje a maioria dos habitantes são bengalis.
Susana Lúcio, revista Sábado, 16/01/2025
Todos os dias são vendidos mais de mil chás com leite, a bebida introduzida no Bangladesh pelos ingleses.
OS TOXICODEPENDENTES CONCENTRAM- -SE NA ZONA MAIS LARGA DA RUA DO BENFORMOSO, JUNTO À RUA DO TERREIRINHO NO FIM DO SÉCULO XIV, A RUA DO BENFORMOSO CONCENTRAVA UM NÚMERO GRANDE DE OLARIAS.
Milhares de pessoas percorrem a Rua do Benformoso, na Mouraria, em Lisboa, todos os dias. Andam às compras nas várias mercearias locais, vão almoçar nos restaurantes de cozinha do Sudoeste Asiático, enviam dinheiro em agências de transferência, encontram-se com amigos para beber um chá com leite e comprar um nut betel, noz de areca forrada com folha de pimenteira, um digestivo, vendido em pequenas bancadas nos passeios. São, na grande maioria, imigrantes do Bangladesh e a Rua do Benformoso é o centro social da comunidade.
Foi aqui que, no passado dia 19 de dezembro, numa rusga da PSP, mandaram dezenas de pessoas pôr as mãos nas paredes. A operação, que resultou na detenção de dois portugueses, por posse de droga e arma branca, gerou um coro de críticas e motivou a manifestação em defesa dos imigrantes, que se realizou no dia 11 de janeiro.
Um dia depois, dois grupos rivais envolveram-se numa rixa no Largo do Intendente, onde desagua a rua, e sete pessoas ficaram feridas. “São grupos que defendem partidos políticos opostos no Bangladesh”, justificou Rana Taslim Uddin, presidente da Comunidade do Bangladesh em
Lisboa. Apesar do desconforto causado pela rusga de dezembro, a polícia foi chamada a intervir. A presença das autoridades não é incomum. Três dias antes, duas viaturas entraram em alta velocidade e de sirenes a soar. Segundo os moradores, alguém assaltou uma loja. “Chamamos a polícia muitas vezes por causa dos consumidores de droga”, diz Junaid, de 26 anos, funcionário da mercearia Sky Zone, a primeira na rua a ser trespassada a um imigrante do Bangladesh. “Os drogados partem os carros para roubar”, acusa, num português rudimentar.
Na zona mais larga da rua, onde começa a Rua do Terreirinho, meia dúzia de homens e mulheres sentam-se no chão a consumir crack, mas há quem prefira a escuridão dos becos. O consumo de drogas faz parte da história da Rua do Benformoso, assim como a presença de comunidades imigrantes.
“Antes era a rua dos chineses”, diz uma mulher à SÁBADO, junto à entrada da rua. Quando Rana Taslim Uddin chegou a Portugal, em 1991, já ali estavam instalados restaurantes indianos. “Não sabia onde comer e segui um casal hindu até ao Martim Moniz”, conta. “Na altura, estava ali instalada uma comunidade de moçambicanos com origem em Goa, que tinham vindo para Portugal depois do 25 de Abril”, recorda. Abriram restaurantes, como o Bangla, que ainda existe na Rua do Benformoso, e lojas de quinquilharias. Na época havia mais lojas de portugueses, como drogarias e ferragens.
Mas havia muitos prédios degradados e o Benformoso, junto ao largo do Intendente, estava dominado pelo tráfico de droga e pela prostituição. “A partir das 17h era perigoso passar por ali”, recorda Rana Taslim Uddin. A zona da Mouraria tinha sido esquecida há décadas pela autarquia. “Era um bairro pobre com os problemas associados a essa realidade e muito segregado”, explica Filipa Bolotinha, membro da Associação Renovar Mouraria. “Os lisboetas associavam-no ao crime, à droga e à prostituição e criou-se um estigma”, diz. Ela própria, na altura a viver na Graça, preferia apanhar o elétrico 28 e depois o metropolitano para ir para a Baixa, a fazer o percurso mais curto: descer a Mouraria a pé. Quando o fez pela primeira vez, percebeu que havia que eliminar o estigma. Fazer visitas guiadas ao bairro foi uma das primeiras atividades da Associação Renovar a Mouraria. “Queríamos dar a conhecer o património cultural do bairro, onde se cantava fado nas ruas, mas não havia uma casa de fados.”
Dos mouros aos fadistas
O estigma e a segregação do bairro e da Rua do Benformoso vêm desde a conquista de Lisboa aos mouros, em 1147, quando a encosta foi cedida como morada aos vencidos, por el-rei D. Afonso Henriques. Durante séculos, a Mouraria esteve encerrada entre muros e eram os moradores que tinham as chaves e trancavam os portões à noite, segundo o livro Mouraria, Retalhos de Um Imaginário, da antropóloga social Marluci Menezes. No fim do século XIV, a Rua do Benformoso, designada na altura Rua de Benfica, concentrava um número grande de olarias e o negócio levou à entrada e fixação das primeiras populações cristãs.
Mas a convivência étnica não durou: em 1496 foi dada ordem de expulsão a mouros e judeus e os edifícios públicos, como a Mesquita Grande, cadeia e cemitério, foram entregues ao antigo Hospital de Todos os Santos. Nos anos seguintes, instalaram-se algumas famílias aristocráticas que construíram palacetes, como o do Marquês do Alegrete, mas depois do Terramoto de 1755, os nobres não reconstruíram as mansões e os casarões que não ruíram foram divididos em pequenos apartamentos e arrendados a quem migrava do interior do País para a capital. No fim do século XIX, era um dos bairros com maior densidade populacional e, também, maior índice de pobreza.
Como hoje se aglomeram dezenas de imigrantes em apartamentos exíguos na Rua do Benformoso, na altura também os moradores viviam em casas sobrelotadas, muitas sem água canalizada, em que os dejetos eram deitados para a via pública. “Na rua, praticamente fazia-se de tudo, assava-se as sardinhas, intrigava-se, namorava-se, brincava-se, catavam-se piolhos, conversava-se, brigava-se…”, escreve Marluci Menezes.
Já na altura, a Rua do Benformoso era uma zona comercial, uma porta de entrada na cidade dos produtos frescos que vinham das hortas que
rodeavam a capital. Também foi o local escolhido para o realizador João Freire Correia construir os primeiros estúdios de cinema improvisados da produtora Portugália Films. Ali começaram as filmagens do grande êxito comercial, Os Crimes de Diogo Alves, lançado em 1911. E existia ainda um centro de apoio aos moradores: o Centro Escolar Republicano Almirante Reis, onde em 1949 apresentou a candidatura à Presidência da República o general Norton de Matos, e em 1958, o general Humberto Delgado.
Mas a pobreza vivia paredes-meias com o crime e a prostituição. Os procurados pela polícia escondiam-se aqui. As criadas e as costureiras oriundas da província atendiam em casas toleradas, onde era permitida a prostituição. Em 1947, existiam 25 casas toleradas, segundo o livro Mouraria, Retalhos de Um Imaginário. Lado a lado com as prostitutas, conviviam os fadistas de rua como o famoso Justiniano, um torneiro de metal, mais conhecido como espirra-canivetes pelo mau feitio. Foi com o intuito de eliminar parte desta Lisboa boémia e facilitar o trânsito na cidade, que o Estado Novo destruiu parte do bairro para construir Praça do Martim Moniz, em 1947.
Renovação inacabada
Mas as ruas habitadas por traficantes e prostitutas, como era a do Benformoso, permaneceram até ao final do século XX. “Há 40 anos era bem pior do que hoje”, diz Manuel Vaz, presidente da Casa da Covilhã, situada na rua. “O Largo do Intendente e parte da Rua do Benformoso eram conhecidos pelos bares de prostituição e pelo consumo de droga”, acrescenta.
A situação piorou quando o Casal Ventoso, centro do consumo nos anos 90, foi desmantelado. “Muita da população que ali consumia e comprava veio para a Mouraria”, conta Luís Mendão, diretor-geral do Grupo Ativistas em Tratamento (GAT), que a partir de 2001 entrava no zona com equipas de rua de apoio aos toxicodependentes. Nesse ano foram identificadas 352 prostitutas e quase 600 toxicodependentes na zona, muitos foram encaminhados para centros de tratamento, mas o problema persistiu nos anos seguintes.
Raul Júnior, de 54 anos, viveu por dentro esse anos. “Em 2008, consumia cocaína e heroína e comecei a vir à Rua do Benformoso comprar porque havia menos polícias à paisana do que na Cova da Moura”, recorda. Dormia ao relento, nas Arcadas do Martim Moniz ou na Rua do Regueirão dos Anjos, e passava o dia no Benformoso. “Era onde acontecia o tráfico e onde se rececionava objetos roubados”, conta. Primeiro fugia das equipas de rua da Associação Crescer, que ofereciam seringas e procuravam estabelecer relações de confiança com os consumidores. “Em 2009 comecei a falar com as equipas e em 2011 fui para uma comunidade terapêutica.” Três anos depois começou a trabalhar na associação e voltou para a zona, agora como membro das equipas de rua.
Foi um pouco depois de o então presidente da câmara de Lisboa, António Costa, ter iniciado o Programa de Ação da Mouraria, que incluiu a instalação do seu gabinete no Largo do Intendente. Dele fazia parte um modelo de redução de danos com o GAT-Intendente em que se apoiava o consumidor com o fornecimento de kits de consumo, roupa, refeições e acesso a consultas médicas. “A vi
zinhança do Benformoso apoiou-nos porque as pessoas estavam mais limpas, havia menos seringas no chão e menos conflitos na rua”, diz Luís Mendão do GAT.
Para os sem-abrigo foi desenvolvido o projeto Housing First da Associação Crescer. “Em 2012 foram identificadas 650 pessoas sem-abrigo na zona”, diz Cristiana Merendeiro da Associação Crescer. “A comunidade olhava para estas pessoas como incapazes de viver numa habitação”, acrescenta. A associação propôs que a resolução dos consumos e dos sem-abrigo passaria primeiro por ter uma casa. “E dar um apoio para indicar os serviços sociais e de saúde a que a pessoa poderia ter acesso.” As primeiras sete casas foram atribuídas na Mouraria.
O ambiente da zona mudou, com a realização de festas culturais, organizada pela cooperativa cultural Largo Residências, e o bar e espaço cultural Casa Independente, no Largo do Intendente. Alguns prédios foram reabilitados e as lojas da Rua do Benformoso, a maioria fechadas, começaram a ser trespassadas para bengalis. “Não é fácil, pedem centenas de milhares de euros”, diz Rana Taslim Uddin. “Mas a pessoa fala com a família, vende um terreno no Bangladesh e investe”, conta. Agora, cerca de 80% dos espaços comerciais são da comunidade do Bangladesh.
Do programa autárquico fazia parte a reabilitação do edificado, mas também este falhou. “A ideia era tornar o bairro mais atrativo para o investimento privado entrar e reabilitar”, conta Filipa Bolotinha. “Mas o investimento privado procura rendimento elevado”, acrescenta. “Nós avisámos a autarquia quando os preços das casas começaram a subir”, diz Filipa Bolotinha. Agora a crise da habitação fez aumentar os sem-abrigo e aumentou a sobrelotação das casas. O número de toxicodependentes também aumentou. Em 2015, o GAT pediu apoio para abrir uma sala de consumo assistido. À falta de resposta, abriram um espaço “em desobediência civil, mas declarada às autoridades” em 2018. O consumo agravou-se após a pandemia. “Conseguíamos tirar 10 pessoas da rua e chegavam 50”, conta Luís Mendão. O GAT IN Mouraria ficou pequeno para o número de consumidores e o grupo tem insistido num espaço maior. “Mas a gentrificação e os turistas dificultam a tomada de decisão política”, acusa Luís Mendão.
No bairro dizem que o problema da Rua do Benformoso não são os bengalis. “O que motiva a insegurança é o ponto de tráfico que existe duas ruas acima”, diz Filipa Bolotinha. Manuel Vaz, da Casa da Covilhã, defende os imigrantes. “Trabalham sete dias por semana, de manhã à noite”, garante, mas o preconceito tem afastado os sócios. “As pessoas chegam e não veem um ocidental”, explica. “Fazíamos um jantar com fado à noite, agora vamos fazer num sábado ao almoço.” Mas não sente insegurança. “Vivo no Restelo e há dois dias foram assaltados dois carros. No Benformoso nunca fui assaltado.”