Eu sei que ver Marisa Matias a descascar favas numa feira ou Nuno Melo a ajudar pressurosamente uma dona de casa a embalar compras num saco; que ouvir os tristes discursos de Paulo Rangel (a quem era de exigir bem mais), ou ver Pedro Marques a passear-se num dos comboios a que nada ligou enquanto governante; que escutar João Ferreira a dizer coisa nenhuma sobre uma Europa de que não pode e não quer dizer coisa alguma ou assistir a uma audiência embevecida com Passos Coelho a recordar saudosamente os tempos da troika, são tudo coisas que nada têm que ver com as eleições europeias de domingo próximo e que só dão vontade de ficar em casa ou ir para a praia. Vamos, porém, esquecer os nossos candidatos a Estrasburgo e pensar que estamos a votar também no Parlamento dos 28, onde muito do nosso futuro próximo se vai decidir e onde a Europa que recebemos dos nossos pais e avós vai enfrentar um desafio decisivo entre os que a querem liquidar e os que a querem preservar e afirmar. Vale a pena, então, recordar o que está em jogo.
1 - A UE é o mais fascinante e o mais revolucionário projecto político jamais apresentado a algum povo desde a invenção da democracia pelos gregos. Consiste em propor a 28 Estados europeus, representando uma infinidade de povos, nações, línguas e uma história de dois mil anos marcada por guerras constantes entre si, um projecto político baseado na paz e prosperidade comum e assente nos princípios da Revolução Francesa: liberdade, igualdade, fraternidade. Um projecto em que cada nação, sem perder a sua identidade própria, traz o que de melhor tem e se compromete a aceitar as regras que representam o melhor denominador comum entre todos e por todos livremente aceite.
2 - Esse projecto nunca esteve tão ameaçado como hoje. E é altura de aqueles que acreditam nele, que o ajudaram a construir ou que o querem preservar, o defenderem.Está ameaçado pelo Brexit, que representa o eurocepticismo imperial de uma grande nação, que faz falta à Europa, mas cuja decisão a Europa tem sabido respeitar o que só demonstra a grandeza e democraticidade do projecto europeu.
Está ameaçado externamente pela inveja que causa e pela força que representa. Na grande luta bipolar EUA-China, ou mesmo na grande luta triangular EUA-China-Rússia, a Europa é o parente pobre. A Europa, ou a UE, não é rica nem em matérias primas, nem em armas nucleares, nem em Forças Armadas. As suas únicas grandes forças são o mau exemplo que pode representar em termos de projecto político assente em direitos de cidadania, em políticas ambientais responsáveis, em políticas económicas que não capitulem perante o grande capital sem pátria nem regras, numa política externa aberta e compreensiva, e numa capacidade competitiva e de inovação que saiba tirar partido da sua diversidade e liberdade criativa. Na sua diferença está a sua riqueza e por isso todos os grandes blocos a querem minar.
E está ameaçado internamente pelo populismo nacionalista, cujos demónios já sabemos onde nos conduzem fatalmente como o demonstraram, não apenas as duas grandes guerras do século XX, mas também as guerras civis da ex-Jugoslávia ou, mais recentemente, a da Ucrânia, ou os diversos separatismos latentes, que o guarda-chuva da UE tem sabido conter. Esse populismo nacionalista, que surge como resposta pronta-a-servir a questões complexas do mundo de hoje, é justamente aquilo que os pais fundadores da UE tiverem em mente quando decidiram, sobre as ruínas de 45, lançar o projecto da UE, que garantiu, desde então, paz e prosperidade, avanços científicos e tecnológicos, liberdade e garantia de direitos humanos, mesmo contra o próprio Estado de origem, a três gerações de europeus. É isso que agora temos de defender.
3 - Justamente pelo que acima fica dito, porque a Europa, o projecto europeu, está sob ameaça e precisa de ser defendido, ele só pode ser defendido pelos que acreditam nele. Pelos que acreditam nele desde a primeira hora. E que hoje ainda continuam a acreditar nele. Pelos que acreditam nele por convicção, por ideologia.
Não pelos cavalos de Tróia. Não pelos que estão ou querem estar em Bruxelas ou no Parlamento Europeu para melhor o destruírem. Ou pelos que lá estão envergonhadamente ou com reserva mental. Os seguidores de Salvini, Le Pen, Orbán, Kurtz, Wilders, Farage, ou os mandatários da extrema-esquerda antidemocrática e antieuropeia, por extensão lógica.
Nos tempos que correm, viver neste espaço europeu de liberdade é um privilégio: é indesculpável não saber merecê-lo
4 - Em particular, ninguém tem mais obrigações de não faltar às urnas no domingo do que os jovens. Está agora na casa dos 20/30 anos a geração do Erasmus, um dos mais bem-sucedidos programas europeus. Esse programa ensinou a esses jovens as virtudes e potencialidades do intercâmbio cultural e internacional que eles viveram e que agora está ameaçado pelos nacionalismos populistas. Ninguém melhor do que eles pode testemunhar o que isso representa de regressão e obscurantismo. Cabe-lhes fazer frente a isso, dar testemunho, defenderem a experiência que viveram. É uma dívida moral que têm para com a UE. Todos os contribuintes europeus pagaram para que esses jovens, saídos de todos os 28 países da União, pudessem estudar num país de sua escolha e aprenderem o que era o privilégio de pertencerem a um clube sem fronteiras nem muros. Chegou a hora de retribuírem, do pay-back, como dizem os ingleses. Ir votar é o mínimo que devem em troca. Se não forem votar nestas eleições, arriscam-se a ver suceder-lhes o mesmo que sucedeu com os jovens ingleses no referendo sobre o Brexit: eles eram largamente a favor do remain, da permanência na Europa, mas ficaram em casa, e deixaram que fosse a velha geração, a geração dos nostálgicos do Império Britânico, a decidir sobre o futuro, que, afinal, era o deles. E, assim, contra a sua vontade, ficaram fora da Europa.
E, de facto, todos os grandes problemas que a Europa agora enfrenta são problemas para a geração seguinte: o crescente envelhecimento populacional e os correspondentes custos com a saúde e as pensões de reforma; o desemprego gerado pela robotização; as dramaticamente baixas taxas de natalidade; a imigração económica e os problemas da sua integração; o combate às alterações climáticas e as decisivas opções de natureza política e económica que terão de ser tomadas para defender o planeta; a defesa dos direitos individuais e da própria democracia contra a intrusão dos predadores informáticos. Tudo isto vai estar obrigatoriamente na agenda de Bruxelas nos próximos anos. Tudo isto deveria ter sido tema obrigatório na campanha eleitoral. Mas não é por o não ter sido que os problemas se esfumaram e que a solução para eles deixa de passar pela nossa vontade manifestada. Nos tempos que correm, viver neste espaço europeu de liberdade é um privilégio: é indesculpável não saber merecê-lo.