1904 Jogos Olímpicos de Saint Louis
18 quilómetros de maratona à boleia por 10 dólares
Estricnina, brandy e...
Dramática a maratona nos Jogos de Saint Louis, em 1904. E rocambolesca. Ao melhor jeito de filme de Hollywood. Estava já o americano Fred Lorz em fase de consagração pelo seu próprio presidente, quando entrou, esbaforido, um motorista de táxi dizendo que lhe dera boleia durante 18 quilómetros e que a troco do silêncio recebera 10 dólares. Ficara-lhe peso na consciência, não fora capaz de manter o segredo e por isso estava ali para denunciar o trapaceiro. Sarrafusca num abrir e fechar de olhos, vaias, apupos, tentativas de agressão, Lorz escorraçado do estádio, logo a garantia de que seria irradiado de toda a actividade desportiva até ao final dos seus dias. Haveria, depois, de ser amnistiado... Entretanto, outro americano, Thomas Hicks, 22 anos, cortara a meta, em estado de delírio, ziguezagueando. À passagem pelos 25 quilómetros já se arrastava. Cambaleante. Quando clamava por ambulância que o levasse para o hospital o seu treinador deu-lhe uma dose de estricnina, misturada com duas gemadas! E continuou a saga... Adiante, borrifou-lhe o corpo com a água aquecida da caldeira do automóvel que conduzia. E Hicks ganhou nova alma correu outra vez em passo estugado. Já com o estádio à vista, queixando-se de alucinações, sentou-se no rebordo do passeio. Outra dose de estricnina lhe deram, agora misturada com brandy que lhe fez voar novo coração. Reergueu-se, precipitou-se para a meta, para a glória todo ele em ímpeto heróico, maquinal. «Não sentia nada, não sabia o que estava a fazer, o que estava a acontecer.» Dez quilos perdeu na gesta. Duas horas depois de o terem consagrado como tal, de olhar agudo e frio, de uma dor que parecia não suportar, matraqueava em sussuro: «Gostaria mais de ser campeão olímpico que presidente dos Estados Unidos.» Campeão olímpico já era. E não o sabia. Depois de receber duas taças de ouro e prata e mais a medalha de campeão, de posar para fotografia que haveria de correr Mundo é que Thomas Hicks explicou o turbilhão em que se transformara a sua cabeça: «Sinceramente, não sabia que era eu o campeão. Só no dia seguinte é que percebi tudo o que acontecera. A estricnina, o brandy, a fadiga, isso tudo me deixou ébrio, louco, com alucinações. E, incrivelmente, nesse estado alucinado nunca me deu para pensar que era campeão olímpico, antes pelo contrário, via-me como um fracassado, humilhado, despedaçado...»
680 atletas, 500 americanos...
Outra vez os Jogos a arrastarem-se no tempo. De 1 de Julho a 23 de Novembro. Atletas 680, seis senhoras apenas no tiro com arco. Americanos eram 500, 50 canadianos o reflexo do preço da viagem. Modalidades? Atletismo, natação, pugilismo, ciclismo, halterofilismo, luta livre, esgrima, remo, tiro com arco, ginástica, ténis, basquetebol, futebol. Para além dessas, Lacrosse, jogo com bola parecido com o hóquei, que teve apenas duas equipas à compita: Canadá e Estados Unidos, assim classificados.
As 6 medalhas de ANTON Heida
Coubertin devia andar então com a cabeça à razão de juros. No temor de sentir a obra a resvalar para ínvios caminhos. Tal como em Paris, misturaram-se no programa olímpico provas para amadores e para profissionais. E continuou a não haver medalhas ou melhor, os três primeiros tinham direito a taças, umas maiores do que outras, mas só ao campeão cabia o privilégio de ir à tribuna recebê-la. Assim, o mais taçado foi o ginasta americano Anton Heida, que ganhou o equivalente a cinco medalhas de ouro e uma de prata. Quatro de ouro couberam ao ciclista Marcus Hurley. George Eyser, também na ginástica, três de ouro, duas de prata e uma de bronze. No atletismo James Lightbody venceu os 800, os 1500 metros e os 3000 metros obstáculos e alcançou uma medalha de prata no corta-mato. Verdadeiramente desconcertante a prova do lançamento de peso de... 25,4 quilos (!), ganha pelo canadiano Etienne Desmarteau, com 10,465 metros.
O desconcertante cubano da maratona
Clubes nocturnos, maças traiçoeiras
Mais uma inimaginável história da maratona olímpica. Feliz Carjaval era cubano. Carteiro de profissão. Na mente se lhe entranhara meses antes ideia fixa: correr a maratona nos Jogos. Só precisava de dinheiro para a viagem. Na esperança de o conseguir andou, longas noites, a fazer espectáculos de... circo, a troco de moe-dinhas deixadas no bornal. Juntou bom pecúlio e de barco partiu para New Orleans. Tentado pelas ilusões despertas pelos clubes nocturnos, gastou, num ápice, o dinheio todo que levara de Havana. Para Saint Louis acabaria por ir a pé. No dia da maratona logo deu nas vistas. Calçava pesados... sapatos, os mesmos que utilizava no dia-a-dia distribuindo cartas, vestia uma t-shirt desmedidamente larga, que lhe dava pelos joelhos, e uma calças de cano fino. Na cabeça, uma boina basca. Por assim trajar se atrasou a partida para a maratona: o starter só disparou o tiro depois de um lançador lhe cortar as calças para que, ao menos, parecessem calções! Mas, ao longo dos 42 quilómetros, continuou a espantar. Já depois dos 30 era para espanto de todos o primeiro. De súbito, sentiu fome. Não se fez rogado e galgou o muro de uma quinta para roubar maçãs. Estavam verdes e causaram-lhe problemas estomacais. Apesar disso, de paragens sucessivas, vergado sob si mesmo, ainda cortou a meta em quarto lugar!
232 medalhas para os Estados Unidos
Os Estados Unidos foram simplesmente arrasadores. Para não confundir, continuamos a falar de medalhas em vez de taças. 80 de ouro, 86 de prata, 72 de bronze para os americanos. Para a Alemanha cinco de ouro, quatro de prata e seis de bronze. E depois Cuba com cinco mais três mais três.
21 senhoras como... Espectáculo
Em Saint-Louis, as mulheres apenas puderam competir no tiro ao arco em duas especialidades: national round e columbia round. Em ambas, vitórias de M. C. Howell. As suas provas faziam parte do programa do... espectáculo e por isso em várias histórias olímpicas se diz que só em 1972 é que o tiro ao arco para senhoras passou a integrar os Jogos Olímpicos.