1. Ecoando a posição defendida por Montenegro, há quem entenda que o Governo precisa da confiança do Parlamento para poder continuar a governar e a executar o seu programa.
Mas há aqui um óbvio equívoco político: no nosso sistema constitucional, os governos não precisam da confiança parlamentar para governar; só precisam de não ter a sua desconfiança (e se manifestada por maioria aboluta), o que obviamente não é mesma coisa. É esse regime de não-desconfiança - que foi uma opção constitucional deliberada, que permite os governos minoritários.
De resto, este Governo "passou" na AR sem nenhum voto de confiança ou de aprovação; e se tal voto tivesse existido, não teria passado. Na apresentação do Governo à AR, o líder do PS declarou então que não votava a rejeição do programa de governo (proposta por vários partidos) e que, portanto, não inviabilizava o Governo, mas advertiu enfaticamente que não votaria qualquer moção de confiança que o Governo viesse a solicitar à AR. Foi na base desse compromissso explícito que o Governo "passou", apesar de ser o mais minoritário que tivemos. E foi o mesmo espírito de compromisso que permitiu ao Governo passar o teste do orçamento em dezembro e, por estes dias, passar incólume as moções de censura de que foi alvo, sempre mercê da abstenção do PS.
Montenegro deve, portanto, o lugar de PM e a subsistência do Governo a esse compromisso com o PS, que este perseverou em respeitar.
2. Mas é justamente esse compromisso que, menos de um ano depois, ele e o PSD agora deitam ao lixo, deslealmente, ao apresentarem uma moção de confiança e ao exigirem ao líder do PS que cruze a sua "linha vermelha" e declare, através do voto, a sua confiança no Governo.
Montenegro não pode ignorar que o único Governo minoritário da nossa história democrática que avançou para uma moção de confiança (o I Governo de Mário Soares, em 1977), perdeu-a e viu-se demitido, pelo que não foi seguramente por acaso que nenhum dos vários governos minoritários posteriores (do PS e do PSD) repetiu a ousadia. O atual PM vai manifestamente contra a lógica e contra a história, ao desafiar a oposição a dar-lhe a confiança política, de que, aliás, não precisa (como mostrei acima), e com uma agravante em relação a 1977: Soares não sabia antecipadamente o resultado da votação e tinha a esperança de que o PCP se abstivesse (o que não veio a acontecer), enquanto agora Montenegro sabe antecipadamente que a sua moção não vai passar.
Ora, continuando Montenegro a denegar o esclarecimento cabal, que o PS reclama (e bem!), sobre a sua ligação efetiva à empresa "familiar" que ele criou para continuar a exercer a anterior sua atividade profissional, este pedido de confiança, que é especialmente dirigido contra o PS, a quem ele deve a investidura parlamentar, tem de ser designado como o que é: uma provocação política qualificada.
Se houvesse dúvidas, esta conduta politicamente pouco digna mostra que ele não merece mesmo a confiança que pede à oposição.
1. Tenho sempre de reforçar isto, mas acho claramente que Montenegro tem coisas a esconder.
2.
«O significado político da solicitação de uma moção de confiança é normalmente um de três: ou obrigar a maioria parlamentar de suporte do Governo a renovar o apoio à sua atuação [...]; ou testar a existência ou subsistência de uma maioria parlamentar de apoio, procurando o reforço da posição política do Governo ou arriscando a sua demissão; ou provocar o reconhecimento formal da falta de condições de governo, proporcionando o encontro de novo arranjo governamental nos quadros político-parlamentares existentes ou forçando a dissolução através da não aprovação da moção de confiança.» - Gomes Canotilho (e, já agora, o insuspeito Vital Moreira).
3. A moção de confiança não significa uma adesão por parte da oposição ao programa político, à agenda ideológica ou às medidas de um determinado governo. Se esta iniciativa do Montenegro não estivesse tão só assente em jogadas políticas e puro xadrez, até seria de analisar a viabilidade de uma moção de confiança, tendo em conta a crise política que se vive.
4. Não vamos fingir também que o PS assumiu um compromisso por responsabilidade institucional. Não é o Montenegro que deve o seu lugar ao PS; o PS devia a viabilização do programa do governo e do orçamento ao país. Tal como, se a vitória tivesse sido do PS, a AD deveria viabilizar o governo desse partido.
Pedro Nuno Santos foi obrigado por "forças vivas" (na curiosa expressão do Ventosga) a viabilizar repetidamente este governo, dando o dito pelo não dito e enfraquecendo a sua imagem. Por forças vivas, refiro-me aos autarcas do PS (que seriam altamente prejudicados eleitoralmente pela não viabilização do OE) e à ala Costista (talvez em troca do apoio que o governo forneceu a António Costa no contexto comunitário).
5. O PS poderia abster-se; a moção de confiança é votada por maioria simples.
6. O facto de o PS também estar a ser irresponsável não retira a culpa total ao Montenegro. Foi o gerador involuntário desta instabilidade, e a pessoa por detrás desta solução voluntária ainda mais instável.
7. Parece óbvio que PNS reagiu a quente, naquele dia, ao dizer que o PS rejeitaria a moção de confiança. Ele nunca imaginaria que Montenegro avançasse, de facto, com a moção de confiança, conforme comprovado no dia da votação da moção de censura do PCP. Se fosse hoje, PNS não avançaria por eleições.
8. Os governos de Montenegro e o de Soares não foram os únicos governos minoritários a suscitar uma moção de confiança. Também o governo de Cavaco (1985 - 1987) a introduziu, com aprovação.
9. A culpa inequívoca disto é de Montenegro. Sim, não é uma pessoa de confiança. Além disso, quer ir a eleições com força; tenho para mim que tencionava fazer isto no futuro, pelo que esta crise somente antecipou esse desejo.