“Ganhámos!”: os russos antevêem uma nova ordem global com a vitória de Trump
Francesca Ebel, Catherine Belton
10–14 minutes
O impressionante regresso político de Donald Trump criou uma oportunidade para a Rússia destruir a unidade ocidental em relação à Ucrânia e redesenhar o mapa do poder mundial, segundo vários membros influentes da elite russa.
Nos corredores do poder em Moscovo, a
vitória do argumento populista de Trump, segundo o qual a América se deve concentrar nos problemas internos em vez de ajudar países como a Ucrânia, foi saudada como uma potencial vitória dos esforços da Rússia para criar a sua própria esfera de influência no mundo.
Em termos ainda mais amplos, foi vista como uma vitória das forças conservadoras e isolacionistas apoiadas pela Rússia contra uma ordem global liberal, dominada pelo Ocidente, que o Kremlin (e os seus aliados) tem procurado minar.
Nas suas primeiras declarações após as eleições, o Presidente
Vladimir Putin disse na quinta-feira que o monopólio do Ocidente sobre o poder global após a Guerra Fria estava “a desaparecer irrevogavelmente”, antes de elogiar Trump por se ter comportado “corajosamente” durante um atentado contra a sua vida no Verão passado.
“As suas palavras sobre o desejo de restaurar as relações com a Federação Russa e de ajudar a resolver a crise ucraniana, na minha opinião, merecem atenção”, disse durante o seu discurso anual no Fórum Valdai, em Sochi.
Os membros da elite russa foram mais directos na sua resposta à vitória de Trump.
“Ganhámos!”, disse Alexander Dugin, o ideólogo russo que há muito promove uma agenda imperialista para Moscovo e apoiou os esforços de desinformação contra a campanha de Kamala Harris. “O mundo nunca mais será como antes. Os globalistas perderam o seu combate final”, escreveu na rede social X.
O vice-presidente da câmara alta do Parlamento russo, Konstantin Kosachev, afirmou no seu canal no Telegram: “A vitória da direita no chamado ‘mundo livre’ será um golpe para as forças de esquerda e liberais que o dominam. Não é por acaso que a Europa estava tão abertamente a 'torcer' por Harris, que iria, de facto, preservar o domínio do 'clã' Obama-Clinton.”
Konstantin Malofeyev, o multimilionário ortodoxo russo que tem financiado uma agenda conservadora que promove os valores cristãos tradicionais na extrema-direita e na extrema-esquerda em todo o Ocidente, afirmou no Telegram que seria possível negociar com Trump, “tanto sobre a divisão da Europa como sobre a divisão do mundo. Depois da nossa vitória no campo de batalha”.
Em termos mais imediatos, esperava-se que a vitória eleitoral de Trump tivesse um impacto dramático na guerra da Rússia na Ucrânia, de acordo com Leonid Slutsky, presidente da comissão parlamentar dos assuntos externos.
“A julgar pela retórica pré-eleitoral... a equipa republicana não continuará enviar cada vez mais dinheiro dos contribuintes americanos para o forno da guerra por procuração contra a Rússia”, afirmou. “Assim que o Ocidente deixar de apoiar o regime neonazi do [Presidente ucraniano Volodymyr] Zelensky, a sua queda ocorrerá numa questão de meses, se não de dias.”
Mas outros foram mais circunspectos e alguns avisaram que a presidência de Trump poderia levar a uma era mais imprevisível. O porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, disse que a Rússia vai esperar para ver se a retórica da campanha de Trump, criticando o apoio à Ucrânia e apelando ao fim da guerra, se traduz em “acções concretas”. Peskov declarou que os Estados Unidos continuam a ser “um
país hostil que, directa e indirectamente, está envolvido numa guerra contra o nosso Estado”.
A deputada russa Maria Butina, que cumpriu 15 meses numa prisão federal dos EUA depois de ter sido condenada por operar como agente estrangeiro não registado, disse ao
Washington Post que esta era “uma boa oportunidade para as relações entre os EUA e a Rússia melhorarem”. E acrescentou: “Esperemos que desta vez (...) Trump cumpra a sua promessa de ser verdadeiramente um pacificador.”
Vladimir Putin e Donald Trump em 2019, durante a cimeira do G20 em Osaka, no Japão Sputnik/Mikhail Klimentyev/Kremlin via REUTERS
Nas semanas que antecederam a eleição, as autoridades russas procuraram minimizar o seu interesse na votação, mas essa posição pública foi desmentida pelo que as autoridades norte-americanas disseram ser a intensificação das operações de desinformação dirigidas pelo Kremlin, procurando alimentar o caos e atingir Harris. As operações basearam-se em esforços anteriores para alimentar sentimentos isolacionistas, de acordo com documentos anteriormente relatados pelo
The Post.
No final, os esforços russos para interferir na eleição de 2024 foram “bastante marginais para a tendência geral do sentimento do eleitor”, conclui Eric Ciaramella, um ex-funcionário da Casa Branca agora no instituto Carnegie Endowment for International Peace, especialmente em comparação com 2016, quando funcionários dos serviços secretos dos EUA concluíram que uma operação russa de “
hack and leak” ajudou a mudar a narrativa em apoio a Trump.
Mas os analistas também observam que mais de uma década de operações de propaganda russa a amplificar vozes anti-
establishment e isolacionistas através de operações cada vez mais sofisticadas nas redes sociais, incluindo no X, mudaram o debate político dominante de uma forma que nunca teria sido possível através dos
media tradicionais.
“Numa plataforma digital, a capacidade de fazer estas coisas funciona”, diz Clint Watts, director do Centro de Análise de Ameaças da Microsoft. Após a votação, Elon Musk, proprietário do X, saudou o resultado como a consolidação do poder da sua plataforma para fornecer pontos de vista alternativos em relação aos “
media tradicionais”.
Fim das sanções
A comunidade empresarial russa também não conseguiu esconder o seu sentimento de optimismo de que a vitória de Trump irá mudar as coisas para melhor.
As acções da bolsa de Moscovo subiram quase 3% no início da sessão de quarta-feira, à medida que os resultados da eleição iam chegando, entre especulações generalizadas de que Trump poderia levantar as
sanções contra a Rússia em troca do fim da sua acção militar.
“Trump é alguém que está habituado a fazer acordos”, frisa um homem de negócios de Moscovo, falando sob condição de anonimato por receio de represálias. “A expectativa é que, com Trump, as decisões sejam tomadas mais rapidamente para acabar com o conflito e aliviar as sanções.”
“Para as grandes empresas, a eleição de Trump é um factor de esperança”, acrescenta. “As sanções estão a estrangular a economia e os custos estão a subir.”
Mas os preços das acções estabilizaram mais tarde, e alguns analistas disseram que os riscos continuam elevados de que as relações possam encalhar e que o impasse possa vir a piorar com Trump. Alexei Venediktov, o bem relacionado editor de longa data da estação de rádio Eco de Moscovo, considera que a possível captura republicana de ambas as câmaras do Congresso quebraria o impasse de longa data no sistema político dos EUA, permitindo que a Administração norte-americana tomasse decisões com muito mais rapidez e criando novos riscos.
A maioria republicana “é a ameaça do ponto de vista do Kremlin, porque não há contradições internas, não há caos interno”, adverte Venediktov. “Era importante para o Kremlin que o candidato vencedor fosse o Sr. ou a Sra. Caos”.
Um sinal claro da falta de confiança do Kremlin no Presidente eleito Trump, acredita Venediktov, foi a decisão de Putin de não o felicitar imediatamente como outros líderes fizeram. “Isto é de facto um insulto”, diz. “É um sinal”.
Putin esperou até a terceira hora do seu discurso anual na quinta-feira para felicitar Trump, depois de falar em desigualdade, inteligência artificial e alterações climáticas.
No entanto, outros conjecturam que a opção de Putin foi de facto um sinal da crescente confiança do Kremlin. Serguei Markov, um analista político ligado ao Kremlin, diz que a expectativa é que Trump acabe por telefonar a Zelensky e a Putin, embora não imediatamente, e proponha um acordo de cessar-fogo na linha de um já apresentado pelo seu vice-presidente eleito, J.D. Vance, que propõe entregar à Rússia o território ucraniano que já controla.
De acordo com esta proposta, seria alcançado um cessar-fogo ao longo da actual linha da frente, juntamente com a criação de uma grande zona tampão desmilitarizada, com novas fronteiras a serem ratificadas em referendos posteriores. “Se tudo correr bem, então Trump levantará as sanções” para tirar Moscovo da órbita da China, afirma Markov.
Mas Markov e outros analistas dizem que é improvável que Putin concorde com qualquer
acordo que não inclua a desmilitarização completa da Ucrânia, que Trump até pode rejeitar. “Putin quer o que ninguém lhe pode dar”, considera Tatiana Stanovaya, do Carnegie Russia Eurasia Center.
Uma possibilidade, no entanto, seria um acordo em que Moscovo e Kiev suspendessem os ataques às infra-estruturas de energia e electricidade, sugere Markov, um acordo que esteve em discussão este Verão, até à incursão da Ucrânia na região russa de Kursk. “Esta seria uma vitória colossal para Trump”, refere Markov.
Thomas Gomart, director do Instituto Francês de Relações Internacionais, avisa que outras forças políticas de extrema-direita e de extrema-esquerda na Europa - muitas das quais têm sido apoiadas por Moscovo – podem ser impulsionadas pela vitória de Trump.
Poderiam apelar a uma aproximação dos EUA à Rússia, potencialmente inaugurando uma nova era em que a política seria dominada por autocratas e em que a coligação vencedora de Trump, Vance e Musk introduziria uma nova ideologia disruptiva. “De certa forma, poderia ser um novo realinhamento na Europa”, diz Gomart.
“Este é um momento muito bom para atacar o
deep state globalista”, acredita Jean-Luc Schaffhauser, um político francês de extrema-direita e ex-eurodeputado que uma vez facilitou um empréstimo de 9,4 milhões de euros de um banco russo para a campanha presidencial de Marine Le Pen. “É um momento para a Europa fazer uma ponte com a América conservadora” e alinhar-se com a Rússia, disse.
“Pode ser o início de uma nova era”, proclama Schaffhauser.