A utopia de Conceição
O (ainda) treinador do FC Porto quer viver num mundo que já não existe. Está agarrado a uma utopia e zangado com o mundo. No caso, com o novo mundo azul e branco.
Nesse
gulag do pensamento, uma prisão fria e longínqua, Sérgio Conceição agarra-se ao cargo onde foi mais feliz, a mandar em tudo e mais alguma coisa, a fazer e a desfazer conforme o humor do dia – e, sabe-se bem, o humor do mister nem sempre desperta de cara lavada e barba desfeita. É imprevisível e desgastante.
Na polémica feia e suja entre Conceição, os seus fiéis acólitos e o ‘insubordinado’ Vítor Bruno, nada se salva. É terra queimada, um banho de napalm, não há vivalma capaz de se afirmar sã, salva e livre.
Onde mora o juízo e a razão? Sem ter toda a informação, não me atrevo a responder. Ainda assim, há muitos dados objetivos passíveis de desenhar o puzzle, e nenhuma das peças abona em relação a Conceição – e, já agora, em relação ao ex-presidente Pinto da Costa.
A matéria de facto é esta:
19 de janeiro de 2024: «Nós isolamo-nos dessa vida eleitoral» - dono da lúcida revelação? Sérgio Conceição.
2 de fevereiro de 2024: «Não é no fim de um mandato que se renova com um treinador» - autor da sensata afirmação? Sérgio Conceição.
4 de fevereiro de 2024:
Conceição abraça Pinto da Costa no clamor do Coliseu, dia de apresentação oficial da recandidatura do histórico dirigente.
25 de abril de 2024 (a 48 horas das eleições!): o treinador aceita revelar a oficialização de um novo contrato, válido até 2028.
Esta cronologia de incoerências é o epicentro do recente terramoto de acusações.
Sérgio Conceição aceitou dar a mão a um candidato que a solicitava, em desespero. Aceitou interferir no normal desenrolar da campanha eleitoral. A partir desse instante, julgo eu, deixou de ter condições para ficar no clube se o vencedor não fosse PdC.
Mais de 80 por cento dos sócios invalidaram a
chico-espertice nas urnas. Uma esmagadora maioria de portistas, naturalmente desgostosa com a trágica gestão dos últimos anos. Nesse instante, Conceição deveria ter abordado Villas-Boas e colocado o lugar à disposição. Humildemente. Não o fez, que se saiba.
No lugar de André Villas-Boas, eu teria sido menos compreensivo. Aguardaria a realização da final da Taça de Portugal, sim senhor, e no dia seguinte chamaria Sérgio ao meu gabinete.
«Meu caro, o senhor não é o meu treinador. Rescindimos amigavelmente, como sempre garantiu fazer neste cenário, ou vamos ter problemas?»
O dossier ficou em aberto, adiado. E a dúvida passou a dominar o espaço noticioso. Recado para um lado, recado para o outro, a SAD defunta a protelar a saída ao limite e as decisões desportivas por tomar.
Vítor Bruno traiu ou não traiu Sérgio Conceição? O primeiro garante que não, o segundo – através da voz de outros – jura que sim. Não me pronuncio, por não ter elementos suficientes. Os existentes são contraditórios, areias movediças.
Se a palavra traição é para aqui chamada, suponho que a primeira traição terá sido assinada pelo presidente derrotado e o seu treinador, a dois dias do sufrágio.
Uma traição a céu aberto, para todos os portistas, do mais anónimo aos famosos, assistirem de boca aberta.
Uma utopia, uma impossibilidade. Mas aconteceu.
PS 1: a André Villas-Boas competirá travar esta controvérsia incendiária. Afirmar, sem margem para dúvidas, quem será o próximo treinador do FC Porto é uma medida urgente. Para a estabilização do ambiente e a rápida tomada de decisões. Em Lisboa, Sporting e Benfica agradecem este tom panfletário no Dragão.
PS 2: Vítor Bruno tem condições e legitimidade para ser um bom treinador principal. Se perdeu o controlo da narrativa, certamente terá sido por surpresa e erro de cálculo. Deveria explicar, ao detalhe, o instante em que ficou a saber da possibilidade de suceder a Conceição. Até por não haver qualquer crime nisso.
PS 3: «Para estar no FC Porto não basta ter contrato». Sérgio Conceição usou e abusou da ideia. Está na hora de colocá-la em prática.
PS 4: AVB e restante direção encontraram uma situação caótica no clube e na SAD. Pagar salários está a ser uma missão de extrema dificuldade, tal a penúria dos cofres. Talvez este drama da falta de liquidez ajude a explicar este adiar de definições no lado desportivo. A empreitada é gigantesca.
IN ZEROZERO