"O Santo e o Sultão
Há oitocentos anos e um mês ocorreu um dos encontros mais estranhos e importantes da história da humanidade, e eu não vi em lado nenhum na imprensa mundial referência a essa efeméride. Também a falhei aqui nesta coluna, mas com a boa desculpa de que a escrita destas crónicas esteve suspensa durante o mês de setembro. Vocês me dirão se trazê-la agora aqui é apenas um dos meus caprichos de historiador ou se a história que vos vou contar tem uma relevância acrescida para o nosso tempo.
Em setembro de 1219, num mundo muito diferente, num tempo muito diferente, na época da Quinta Cruzada, dois homens muito diferentes do comum encontraram-se. Um deles era um ainda jovem italiano, de família rica e ex-militar, Giovanni di Petro di Bernardone, conhecido entre os frades apenas pelo seu nome religioso de Francisco, da cidade de Assis. O futuro S. Francisco de Assis.
O outro homem chamava-se Al-Malik al-Kamil Nasir ad-Din Muhammad, ou ainda Malique Camil Nácer Adim Abu Almaali Maomé, ou simplesmente Al Kamil. Entre os europeus era conhecido como Meledino, um nome que rimava e fazia lembrar o do seu temido tio Saladino, o grande chefe militar curdo que em nome dos muçulmanos se opôs aos cruzados cristãos. Meledino, ou Al Kamil, prolongou a linhagem prestigiosa dos seus antepassados como Sultão do Egito, e Senhor de Jerusalém, que governava a partir do Cairo.
Francisco de Assis era um seguidor da Cruz, que queria viver segundo o exemplo de Cristo e que tinha abandonado as fortunas da sua família para viver na pobreza como frade mendicante. No entanto, sabemos que quando uma relíquia da cruz passou por perto dele para excitar os jovens cristãos a mais uma cruzada, Francisco não foi ver a cruz, talvez porque não aprovava o fim guerreiro para que ela estava a ser usada. Em vez disso, Francisco imaginou um plano mais ambicioso, para não lhe chamar completamente irrealista. Iria ele, pessoalmente, um frade que pouca gente conhecia, ao Cairo. Pediria audiência ao Sultão Meledino. E convertê-lo-ia ao cristianismo, poupando a humanidade à tragédia
de mais uma cruzada.
Por incrível que pareça, foi mesmo isso que Francisco de Assis fez. Meteu-se num barco e foi para o Cairo. A missão tinha tudo para correr mal. O mais certo é que ao chegar a terras comandadas por muçulmanos (embora houvesse uma grande proporção de população cristã, os chamados coptas, no Egito de Meledino) o frade Francisco fosse feito prisioneiro, escravo, ou diretamente mártir. Por estranho que pareça, nada disto aconteceu. O sultão Malik Al Kamil achou o visitante intrigante, e decidiu recebê-lo.
Talvez tenha achado que poderia ele convertê-lo ao islamismo. Seja como for, tratou-o bem. Conversaram muito. Estiveram juntos vinte dias. E depois Francisco de Assis voltou à Europa. Não sabemos o que aconteceu durante esses vinte dias. Ninguém tomou notas. Os dois homens terão conversado. E que mais? Jogado xadrez? Tomado refeições em conjunto? Ninguém sabe. Mais tarde este foi um dos aspetos da vida de S. Francisco de Assis que os seus seguidores não enfatizaram.
Quanto aos muçulmanos, porque haveriam eles de lembrar um jovem italiano que veio para ver o Sultão, um homem muito mais importante do que ele?
Sabemos, contudo, o que não aconteceu. Nenhum dos homens converteu o outro. Não perderam aliás muito tempo com esse projeto. Ambos terão reconhecido reciprocamente que Deus já estava com o outro, e deixaram-se em paz com as suas escolhas religiosas de bom muçulmano sunita e bom cristão latino.
E é isto. É por isso que este encontro é historicamente tão importante e por isso que ele deveria estar a ser lembrado agora que faz oitocentos anos. Porque ele nos recorda que mesmo numa época de tribalismo desenfreado e violentíssimo como foi o das cruzadas, houve gente de ambos os lados que via a coisa de outra maneira e reconhecia que não precisava de converter o outro nem massacrá-lo para viver em harmonia. Se isto é apenas uma efeméride sem importância, é porque já não precisamos da louca coragem de gente como Francisco de Assis e Malik Al-Kamil. Se não, é porque ainda precisamos deles.
Malik Al-Kamil era um governante especial. Uma vez apanhou um exército cristão numa armadilha, bastando-lhe mexer com o nível das águas do Nilo para que os cruzadosÆcassem enterrados em lama e lodo até aos joelhos. O sobrinho de Saladino poderia facilmente tê-los cortado em pedaços. Em vez disso, libertou-os, alimentou-os e mandou-os embora. De outra vez permitiu aos cristãos que ficassem com Jerusalém no quadro de mais um dos vários tratados de paz que lhes propôs, em geral rejeitados porque considerados inconcebíveis.
Talvez só mesmo alguém como Francisco de Assis o pudesse entender, e ele ao outro. Talvez eles vissem mais fundo e entendessem que cristianismo e islamismo (e judaísmo) eram apenas outros tantos prismas através dos quais ver o mesmo monoteísmo.
Esta história diz-nos também que as ideias têm consequências. Gerações depois, gente como António de Lisboa ou os Mártires de Marrocos tentaram imitar Francisco de Assis, indo a território muçulmano, sem armas, converter os infiéis, em geral sem sucesso e correndo risco de vida. Talvez não tivessem entendido que o mais importante para Francisco e Al-Kamil não era converterem-se. Era conversarem.
Foi há oitocentos anos e um mês, e poderia fascinar-me mais um mês e oitocentos anos, se os tivesse."
Rui Tavares, jornal Público 1/11/2019