"O Livre é radical ou apenas sensato?
Das 257 medidas propostas pelo Livre no programa eleitoral, quantas são radicais e quantas são puro bom senso?
Terminei a leitura dos programas políticos dos três partidos que entraram pela primeira vez na Assembleia da República. Depois do Chega e da Iniciativa Liberal, fui ler as propostas do Livre.
Alberto Gonçalves, no Observador, e alguns leitores aqui no PÚBLICO, dizem que Joacine Katar-Moreira é de extrema-esquerda. Ter essa conversa é perder tempo. Mas pessoas interessadas no mundo real dizem que o Livre é um partido da esquerda radical ideia mais estimulante. Será verdade?
Radical é uma palavra bicuda. Pode ser mau e bom. A História está cheia de bons radicais, como Martin Luther King, radical na defesa da igualdade de direitos para os negros, e Susan B. Anthony, radical na defesa do direito de voto das mulheres.
Como é uma palavra muito usada para falar do Livre, foi a lupa que usei para ler as 53 páginas do programa para estas legislativas. Estava à espera que fosse mais rápido. Tive de chegar à página 45 para encontrar uma ideia verdadeiramente radical.
Lembra-se da crise dos professores que se arrastou entre Novembro e Maio e acabou com a oposição, do CDS ao Bloco de Esquerda, a obrigar o Governo a contar o tempo de serviço até ao início da crise? O Livre concorda e defende que deve considerar-se a contagem integral não só dos professores como de todos os trabalhadores das carreiras e corpos especiais da administração pública.
Isto não só é radical como é injusto. Os 680 mil trabalhadores públicos recuperam o que perderam na crise. E os quatro milhões de trabalhadores privados?
Mas a maior parte das 257 medidas do Livre são puro bom senso. É radical defender a proibição, na União Europeia, das transferências de capitais entre o sector bancário e os paraísos fiscais que não divulguem de forma transparente os beneficiários?
É radical propor a criação de moedas locais? É verdade que a ideia foi defendida há 100 anos por teóricos anarquistas e libertários como Silvio Gesell e Rudolf Steiner. Mas hoje há 140 cidades americanas com moedas locais, como os berkshares no Massachusetts, há a libra de Bristol, o chiemgauer de Prien am Chiemsee (na Baviera, Alemanha) e o dólar de Toronto, usado durante 15 anos. A ideia é transversal: proteger as comunidades contra as crises internacionais e apoiar o comércio local, mantendo a riqueza no lugar e evitando a transferência de lucros para as multinacionais. Em Portugal, autarcas do PS e do PAN já propuseram a ideia.
É radical propor a possibilidade de terceiro género no registo? Na Alemanha é possível desde 2013 e é lei desde 2018.
É radical propor a criminalização do racismo (a lei pune como contra-ordenação), quando os crimes de ódio existem no sistema legal americano desde 1871 e na Inglaterra quem for condenado por agressão incorre numa pena de seis meses de prisão, mas se for condenado por agressão motivada pela raça enfrenta uma pena até dois anos?
É radical alterar a lei da nacionalidade de modo a que qualquer pessoa que nasça em território português tenha a nacionalidade portuguesa imediata e definitiva? Não é assim em 30 países, dos EUA a Cuba, passando pelo Brasil e a Argentina?
É radical retirar a disciplina de Educação Moral e Religiosa do currículo das escolas públicas, sendo Portugal um país laico, que não tem a frase in God we trust nas notas, nem faz orações no início das sessões parlamentares?
É radical discriminar positivamente o interior, através da redução de IRS para todos os trabalhadores e da redução no IRC para as empresas que criem empregos no interior?
É radical propor o fim da isenção dos impostos sobre o combustível às companhias aéreas, um dos factores que ajudam a que um bilhete de avião seja mais barato do que um bilhete de comboio?
É radical declarar a emergência climática nacional, quando foi isso que o secretário-geral da ONU fez à escala mundial?
É radical reivindicar a adesão da UE à neutralidade carbónica no máximo em 2050, quando instituições e governos de várias famílias políticas repetem que as metas que temos são insuficientes? E quando o Presidente francês, Emmanuel Macron, acaba de apresentar um método para um Orçamento Verde, criando uma missão mista para identificar, dentro do Orçamento do Estado, as despesas e receitas com impacto ambiental significativo, positivo ou negativo, para avaliar com rigor os seus efeitos, com a ambição expressa de orientar o mundo em direcção à neutralidade do carbono até 2050? Ou quando a Autoridade Europeia para a Aviação reconhece que as actividades da aviação estão a afectar a saúde e qualidade de vida dos cidadãos europeus e que, a menos que sejam tomadas mais medidas de mitigação, a aviação e o transporte marítimo globais vão contribuir em 40 % das emissões globais de dióxido de carbono em 2050?
É radical favorecer os produtos feitos para durar e criminalizar a obsolescência programada propositada? Ou proibir a queima de roupa não vendida? Ou fechar as portas giratórias entre público e privado, aumentando o período de nojo de passagem de cargos públicos para o sector privado [no] mesmo sector? Ou limitar o poder do sector financeiro e proibir produtos financeiros excessivamente complexos? Ou acabar com a Europa Fortaleza e propor um programa europeu digno de instalação e integração de refugiados com partilha de responsabilidades?
Pode dizer-se que sim. Mas é um radicalismo sensato e as duas coisas são compatíveis. O nosso lugar é no meio da esquerda, diz a declaração de princípios do Livre, aprovada em 2013. O que fará com isso a deputada Katar-Moreira, só o tempo dirá."
em Público por Bárbara Reis