Muitas vezes não se trata delas próprias mas do que as rodeia. Ensinar desde cedo que o género é diverso e que há diferentes formas de vivê-lo, contribui para o bem-estar psicológico, tanto das crianças que se identificam com o género atribuído à nascença, como das que não. Ajuda as crianças a compreender o mundo, desenvolver empatia com pessoas diferentes e a sentirem-se seguras, mesmo que não sejam "diferentes".
Ou seja, a maior parte das crianças vai continuar a identificar-se com o género com que nasceu (as crianças são curiosas, naturalmente empática e inteligentes, não são esponjas), ao mesmo tempo que ganha empatia com os miúdos que não são como elas, e torna estas mais seguras, porque a normalidade que se discute aqui não é ser a maioria, mas ser aceite pela maioria.
Claro que tudo isto é mais utópico do que realista, poque a escola é apenas um dos vectores da educação das crianças, mas dizer que o Zé pode ter nascido Zé mas pode-se tornar Maria é terrorismo psicológico, ao mesmo tempo que se diz que gritar "o Zé é paneleiro" no recreio fortalece o caráter do rapaz porque ser insultado faz parte do crescimento, é um conceito que, na minha cabeça, não faz mesmo qualquer sentido.
Eu acho que a mensagem "o Zé pode ter nascido Zé mas pode-se tornar Maria" é terrorismo psicológico se for dita a crianças de seis ou dez anos. Se for dita a jovens de 15 anos já não vejo problema nenhum, parece-me até pedagógico. Tudo depende se tens idade para compreender o que é dito. Se fores demasiado jovem, essa mensagem só te vai causar inseguranças, porque as crianças não têm um desenvolvimento moral racional e psicológico que lhes permita compreender tal mensagem.
Eu não acho que sofrer bullying e discriminação fortaleça o carácter. Depende dos casos. E também da gravidade do bullying. Mas não estou longe de acreditar que aquilo que não te mata, torna-te mais forte.
O que eu acho é que hoje se corre um risco ainda pior, que é o de proteger tanto as crianças que elas se tornam umas florzinhas de estufa incapazes de se defender. Eu cresci num meio social bastante agressivo, e aos 12 anos era gozado por ser demasiado alto ou demasiado magro ou por ter as orelhas não sei como ou porque o meu pai, não sendo rico, tinha mais dinheiro do que os pais dos vizinhos. A solução aí era responder na mesma moeda, ou rir-se, ou passar a evitar os agressores. A experiência pode ser desagradável, mas ensina-te coisas. Ensina-te, por exemplo, que podes levar um idiota à fonte do bom-senso, mas não o podes obrigar a beber.
Da mesma forma, não foi muito agradável estar exposto a situações perigosas e ter chegado aos 12 anos já com uma bela colecção de cicatrizes de cortes, queimaduras e até uma perna partida. Mas além da liberdade e autonomia subjacente a esses acidentes, também isso me ensinou coisas. Muito pior é ser educado segundo o princípio do "não faças que te podes magoar, filho" como aconteceu com filhos de amigos meu, que chegam aos 20 anos e nunca caíram duma árvore, nunca deram uma martelada num dedo porque nunca pegaram num martelo, nunca levaram pontos, nunca espetaram um prego ferrugento no pé, nunca caíram de bicicleta nem nunca andaram à bulha. Qual é o resultado de toda essa protecção? É chegarem aos 20 anos e votarem no Chega.
A mim aconteceram-me esses acidentes todos, e ainda ser atropelado por um carro, e olha, estou aqui e não voto no Chega. Ninguém me tira da cabeça que tem de haver uma relação de causa-efeito entre as duas coisas.