Essa ideia de dividir o mundo em democracias e o resto ser uma cambada de tralha obscurantista é uma simplificação excessiva e pouco lógica por diversos motivos.
Primeiro, porque aquilo que conduz aos chamados estados liberais democráticos na europa e nos EUA são um conjunto de revoltas e progressos muito particulares destas sociedades, associadas não só à escravatura, como fundamentalmente às enormes desigualdades sociais geradas por elites abastadas que taxavam fortemente as populações, fomes e extensiva pobreza. Essas revoltas populares provocam pressão nas elites e obrigam-nas a reformular um sistema declaradamente opressivo e diretamente violento, para formas de governação igualmente opressivas, mas não tão de forma declarada e violenta. No fundo os opressores tiram o pé do pescoço das populações e colocam-no sobre as costas, aliviam ligeiramente o sofrimento, diminuem a revolta, mas continuam a explorar as populações. É uma luta histórica e constante pela obtenção de mais direitos sociais e laborais. Mesmo após a revolução industrial, em países democráticos, eram constantes confrontos brutais entre trabalhadores e a polícia, muitas vezes com várias mortes.
Os caminhos e contextos históricos de sociedades como a chinesa, a iraniana e outras culturas asiáticas são completamente diferentes. Os chineses, por exemplo, não estão interessados em ser uma democracia. E quando falo em chineses, falo do povo, existe uma cultura milenar com raízes profundas na psique das populações associada à figura do líder unificador. As pessoas têm perfeita noção que é impossível governar um país como a China com uma democracia. Além de que China, mesmo tendo sido durante uns bons milénios, o mais poderoso império do planeta, nunca procurou disseminar a sua influência pelo mundo. É um país com um historial de muitos períodos de paz e prosperidade e outros de intensas e sangrentas guerras, mas todas associadas a conflitos nas suas fronteiras entre tribos e etnias locais.
Eu também prefiro viver em democracia, mas não me acho a mim nem à sociedade onde vivo culturalmente superior a alguém ou a outra sociedade com uma evolução distinta da minha a milhares de km de distância.
Depois há também a questão do quão democráticas são realmente as democracias. As democracias liberais do chamado ocidente, também têm uma capacidade tremenda de serem totalitárias quando os seus interesses superiores estão em jogo. Tudo de diversos instrumentos dentro de cada democracia e de como funcionam. Os EUA sempre tiveram uma máquina de propaganda extremamente sofisticada. Quando é necessário fabricar uma mentira para dar consentimento a um abuso de poder, eles fazem-no sem hesitar. Há, por exemplo, toda uma indústria de propaganda em torno do setor militar. Praticamente todos os filmes de Hollywood sobre guerra são um instrumento de propaganda e glorificação das guerras dos americanos, eles são sempre os heróis salvadores do mundo e os outros os maus e os vilões. Se te juntas ao exército és automaticamente um herói, mesmo que vás lutar guerras que não sabes sequer qual é o motivo por estares a lutá-las. Mesmo sendo uma democracia liberal, os EUA sempre conseguiram mandar os seus jovens para guerras cujas justificações foram mentiras fabricadas.
Se me perguntarem se eu prefiro viver numa sociedade europeia ou num país com um regime autocrata como o Irão ou a China, eu prefiro viver onde vivo. Mas também é preciso ter noção que o nível de prosperidade económica e social que as nossas sociedades atingiram, têm como base uma profunda luta pela obtenção de mais direitos sociais por parte das classes trabalhadores no século 19 e século XX. Além, naturalmente, da exploração e opressão de povos de outras regiões do mundo, sendo o continente africano um exemplo claro. Em quantos países africanos impedimos o progresso das sociedades porque explorávamos ferozmente os seus recursos naturais e matérias-primas que eram o motor das nossas economias. Ainda hoje isso acontece. Enchemos os bolsos de ditadores para assegurar o nosso proveito.
Portanto, mais cuidado com essa ideia de que por vivermos em supostas democracias somos culturalmente superiores ou melhores quando sempre tivemos e temos uma capacidade muito significativa para praticar atrocidades contra povos mais fracos para proveito próprio.
E no caso do Irão, a "tralha" do regime islâmico só chega ao poder porque a CIA e o MI6 assassinaram um líder democraticamente eleito e instauraram um monarca absolutista no poder simplesmente para as empresas americanas e britânicas explorarem o petróleo iraniano de forma abusiva.
Há democracias e democracias. Os regimes liberais também os há totalitários, mas não pelos meios de uma única pessoa. Há as democracias que o são no papel, mas não o são em forma.