A estrada é longa
Não podemos iludir-nos com a impossibilidade de uma Europa governada ao arrepio dos Direitos Humanos, e foi por isso que nos indignámos com o discurso de Maria de Fátima Bonifácio, profundamente racista.
Há imagens que nos magoam e tocam tão intensamente que sabemos, a partir desse momento, que ficarão gravadas na nossa memória e acompanhar-nos-ão, inquietando-nos. Foi no jornal Público (8.7.2019) que olhei demoradamente a imagem legendada Navio humanitário Alankurdi, Malta, fixando-me, em dois homens de culturas diferentes, de mãos dadas, um ajoelhado e outro deitado. O rosto de ambos não era visível, mas o gesto fraterno expressava o seu olhar: o de quem salvara, movido pela compaixão, e o de quem fora salvo, na fuga desesperada por uma vida digna, jazendo extenuado e doente.
Perante a tragédia de quem sofre, é instintivo, é espontâneo o gesto humano de proteger, de salvar. Não se colocam dúvidas, o tempo conta, não há lugar para o medo, e a própria consciência (quando existe) força a desobediência se essa situação se impuser. Não há muito tempo (28.05.2018), vimos um jovem do Mali, emigrante ilegal, em França, Mamadou Gassama, salvar corajosamente uma criança de 4 anos que se encontrava pendurada numa varanda. O próprio Gassama confessou que, nesse momento de aflição, fora impelido a avançar pensando exclusivamente em impedir a tragédia que se avizinhava. Num prémio forçado, porque a hipocrisia é mesmo assim, foi-lhe concedida a nacionalidade francesa. Caso o dramático episódio não tivesse ocorrido, Mamadou Gassama continuaria na sua procura desesperada em legalizar-se e poder trabalhar. Subitamente, passou de proscrito a herói, de ilegal a cidadão francês.
Impossível não associar a imagem descrita do migrante, aparentemente salvo, numa situação recorrente, que dura há vários anos, à inércia política e também à bestialidade humana que reinam na Europa, apelidada orgulhosamente de civilização superior pelos que receiam o contágio do Outro. Na sua argumentação pretensamente civilizada, e que consideram indiscutível e dogmática, porque seguros do tristemente apelidado choque de civilizações , salientam de forma hipócrita a sua pertença a uma cultura superior, a uma cultura milenária que dá pelo nome de Cristandade, bem como a sua ligação natural aos Direitos Universais do Homem, decretados pela Grande Revolução Francesa de 1789. Fascinados pela sua própria ignorância ou conscientes do seu discurso que, discriminando, sem pudor, o Outro, fomenta o populismo, adulteram a mensagem do Cristianismo, bem explícita nos Evangelhos, e o texto enunciador dos Direitos Universais. Na sua aversão e no seu desprezo ao e pelo Outro, tecem propositadamente um imbróglio que confunde o incauto e alimenta o racismo, porque é de racismo que se trata. Ouvimo-los, guinchando os seus Basta, a sua Vox, a sua Frente Nacionalista e afins, nas suas diferentes geografias europeias. Em comum, a anti-imigração, e a consequente perseguição a quem desobedecer ao desumanamente decretado, bem como o uso de um vocabulário assaz violento e agressivo que acentua a imperiosa necessidade de limpeza, política e étnica, bem à maneira fascista-nazi.
Felizmente, haverá sempre justos. Ontem, como Aristides de Sousa Mendes em relação aos que, apavorados, fugiam do Nazismo, na sua grande maioria Judeus (mas também ciganos e outras etnias consideradas inferiores) condenados à morte não só por alemães, mas pelos próprios países europeus que se tornaram cúmplices do Holocausto, ao não autorizarem a entrada de refugiados judeus e ao fingirem igualmente ignorar o que se passava, nos horrendos e indescritíveis campos de concentração, apesar de provas e de testemunhos indiscutíveis, nomeadamente, e entre muitos, os do resistente polaco Jan Karski. Hoje, como o voluntário da imagem, ou como Miguel Duarte, o estudante do Instituto Superior Técnico, que trabalhou a bordo do Iuventa, em missões se salvamento de refugiados no mar Mediterrâneo e agora é por isso mesmo acusado pela Justiça (?) italiana, arriscando uma pena que poderá ir até 20 anos de prisão. Espera-se que o silêncio sobre esta situação possa significar uma estratégia política para melhor defender Miguel Duarte.
Foi porque não podemos iludir-nos com a impossibilidade de uma Europa governada ao arrepio dos Direitos Humanos, que nos indignámos com o discurso de Maria de Fátima Bonifácio (Podemos? Não, não podemos Público, 6.7.2019), profundamente racista. A liberdade crítica é um valor, mas que se anula quando transformada em agressão ostensiva contra o Outro, descrito como incapaz ou preguiçoso, colorido ou inassimilável. Não é relevante identificar o Outro, é relevante, sim, não tolerar este tipo de discurso num jornal que nos é referência.
Um grande amigo lembrou-me uma bela música, de um grupo do meu tempo e do qual muito gostava, Hollies (1969). Deixo-lha, Maria de Fátima Bonifácio: He aint heavy hes my brother.
Maria do Carmo Vieira, professora e cronista do Público
11 de Julho de 2019
https://www.youtube.com/watch?v=gIwtLumZeZY
ps: aos que se mostram tão sensíveis com a linguagem de alguns e menos com a de outros, devo dizer que isso é muito menos importante do que a insensibilidade demonstrada pelo sofrimento dos seus semelhantes só porque não aceitam que são pessoas iguais a eles. A mesma hiper-sensibilidade não é demonstrada quando se tenta colar a todos os refugiados e imigrantes, o rótulo de criminosos e de invasores que nos vão destruir.
Até pelas funções que exerço e pelo meu percurso de vida, terão em mim alguém que fará tudo para lhes desmontar as mentiras e para os desmascarar. Aqui e noutros espaços!