José Maia: “Conhecer o lado humano dos jogadores importa cada vez mais”
Novembro 2020 | Por: Nuno Aguiar-Branco & Tiago F. Silva
O
“scouting” tem ganho cada vez mais relevância no futebol. O que parecia ser uma função inexplorada, hoje é indispensável no organigrama dos principais clubes, ao ponto de assentar em estruturas altamente profissionalizadas. Seja no recrutamento de jogadores, como na observação de adversários, um “scout” assume-se como peça vital no quotidiano de um clube. Foi esse lado que a STAR quis conhecer, juntando à conversa José Maia, consultor de scouting do City Group. O testemunho na primeira pessoa do português que é “os olhos” de um dos gigantes do futebol mundial.
STAR – Conte-nos o pouco do seu trajeto no futebol, que mostra ser rico em experiências nos mais variados locais.
José Maia – Comecei por jogar futebol, nos escalões de formação do Leixões e Leça. Nesta última equipa, subi à equipa sénior, numa altura em que já andava na Faculdade de Desporto da Universidade do Porto. A impossibilidade de conciliar o curso com o horário dos treinos fez-me optar pelo que aparentava ter maior futuro. Continuei a jogar futebol, mas a nível distrital, tendo jogado em vários clubes, entre eles o Salgueiros. Em simultâneo, iniciei as funções de treinador nas escolas de formação do Leixões, a Escola de Futebol João Faneco. Fui conciliando as atividades até ao final da faculdade, altura em que comecei a dar aulas. Nessa altura, já era treinador dos escalões de formação do Leixões SC. Fui passando pelos diversos escalões do clube, inclusive pela equipa sénior feminina que militava na 1ª divisão nacional. Mais tarde, houve oportunidade de trabalhar a tempo inteiro no futebol, no caso para uma agência de jogadores, a Onsoccer International, no departamento de observação. Estive na agência durante três anos, ao longo dos quais aprendi imenso. O facto de estar apenas focado numa atividade foi importante para perceber o que realmente queria fazer no futuro. Ao longo deste período fui percebendo que o trabalho na agência não era algo que me preenchesse na totalidade. Apesar das boas condições proporcionadas, a falta do treino e principalmente de estar envolvido num ambiente que contemplasse abordagens mais específicas ligadas ao jogo e ao treino, fizeram com que desse por concluído este período. Foi aí que regressei ao Leixões SC como coordenador. Entretanto, e de forma inesperada, surgiu o convite para fazer parte do departamento de “scouting” do Sparta de Praga. Já conhecia o “chief scout” e este convidou-me para fazer parte da estrutura, onde estive dois anos. Mais tarde, ingressei na Associação de Futebol do Porto, como treinador das equipas de formação. Paralelamente, trabalhei como “scout” para o Athletico Paranaense, um trabalho muito focado numa janela de mercado. Mais recentemente, surgiu a oportunidade de trabalhar para o City Group, como scout/observador. O grupo é constituído por 10 clubes, sendo o trabalho bastante abrangente. A região onde baseio a observação é a Península Ibérica, apesar de não se cingir a esta localização.
STAR – Como é o dia-a-dia de um “scout” normalmente?
JM – Não há dois dias iguais, mesmo que as tarefas agendadas para esses dias sejam semelhantes. Como é óbvio, e dependendo das funções e dos departamentos onde trabalhamos, a organização/planeamento do trabalho, o período da semana, do mês ou até mesmo dos calendários competitivos das diferentes competições, condicionam e moldam o tipo de trabalho. Ao contrário do que muitas pessoas possam pensar, a função de um observador/scout não se limita à observação de jogos, equipas e jogadores. A recolha de informação é permanente e deverá incidir sobre as mais diversas variáveis. O reconhecimento, importante e que deve ser bem consolidado e fundamentado, das qualidades técnicas, táticas, físicas e até mesmo psicológicas de um jogador, deverá sem complementado com mais dados que validem a análise do comportamento do jogo dentro do campo, durante um jogo. Na verdade, toda a envolvente do jogador é fundamental para perceber certos comportamentos que eles possam ter (ou não) em situação de jogo. Neste momento passamos por um período onde o acompanhamento “in loco” dos jogadores se tornou uma tarefa praticamente impossível. Não é que seja impossível realizar um trabalho de pormenor com base na observação em vídeo dos jogos. No entanto, esta observação no contexto do jogo permite-nos tirar ilações diferentes daquelas que obtemos em contexto de análise vídeo. Nesta fase e partindo do pressuposto que o foco do trabalho passa por acompanhar e manter informação atualizada de determinada liga ou país, é necessário perceber quais os meios que temos ao dispor para o realizar de forma mais específica possível. É óbvio que a análise dos jogos é um momento importante no dia-a-dia, no entanto, costumo dizer que esta observação se cinge a 25% do trabalho. Manter a informação atualizada, através de relatórios individuais ou coletivos, sejam da prestação dos jogadores ou até mesmo de dados relativos à situação contratual dos atletas, é tão ou mais importante que a observação. No fundo, e para tentar contextualizar, de nada servirá observar jogos e jogadores se depois essa informação não entrar nos canais de comunicação de determinado de departamento de observação. Devido ao período que estamos a passar, várias rotinas foram limitadas o que levou a uma reestruturação da agenda diária. No entanto, este aspeto ligado ao planeamento do dia de trabalho é fundamental para conseguir manter o foco.
STAR – Quais as características essenciais que um observador deve ter?
JM – O observador por si só, sabe à partida que a função requer conhecimento multifacetado, sendo esta uma tarefa pouco monótona. Tal como em muitas outras profissões, diria mesmo em todas, tem de se ter uma paixão enorme pela área, neste caso pelo futebol, porque o consumimos 24 horas por dia. Mesmo quando não estamos a ver futebol, estamos sempre “ligados” e na expetativa por recolher algum tipo de informação que seja útil ao trabalho. Se entendermos a função como apenas trabalho, vai haver um momento em que naturalmente iremos desligar. Para além disso, e acredito cada vez mais neste aspeto, tem de haver isenção no desempenho da função, tornando a observação o mais “limpa” possível. Uma análise desprovida de crenças será tão mais válida quanto menos contaminar a informação que é passada sobre um jogador. Outra ainda, e isto acontece muito, temos de estar cientes de que a nossa forma de entender o jogo não é a mesma da estrutura para a qual trabalhamos. Há que procurar de acordo com o contexto, não tentar avaliar as coisas da forma como nós gostamos. Por fim, acho que tem de haver uma enorme capacidade de trabalho e de organização, porque, se não formos capazes de gerir toda a informação, organizando-a em bases de dados, com o intuito de nos auxiliar no futuro, não valerá a pena trabalhar a médio/longo prazo. A memória tem limites, muitas vezes não consegue durar meses, e é informação que se vai perder, ou seja, é tempo e dinheiro que se está a perder. Existem outras, do ponto de vista da ética, que tem maior peso e relevância em certas idades e certos escalões de formação. É preciso lembrar que o “scouting” não contrata ninguém, só dá orientação e assume um papel fundamental, mas não contrata, isso é tarefa dos órgãos de gestão e administração de um clube.
STAR – Qual o tempo máximo que manteve um jogador sob observação?
JM – Não acredito que haja uma norma que balize o tempo mínimo ou máximo de observação de um jogador. No entanto, o período de observação dependerá sempre da idade do jogador e do nível competitivo onde se encontra. Quando falamos de jogadores mais jovens, que se encontrem nos escalões de formação, temos que perceber que não há uma estabilidade na performance evidenciada. É necessário conhecer e acompanhar o jogador desde idade jovem, tentando perceber o percurso dele como um trajeto que dificilmente será uma linha reta com evolução sempre crescente. Nesta linha haverá momentos em que a instabilidade estará presente, criando curvas que podem ser negativas em determinados momentos. Esta situação poderá não ser sinónimo de que o jogador terminou a evolução, ou que já não será capaz de atingir determinados patamares de excelência. A evolução nestas idades depende de imensos fatores internos e externos ao atleta. Se no caso dos profissionais, este tipo de fatores assumem um papel fundamental, em idades mais jovens, a preponderância é ainda maior. Para além disto que falei anteriormente, há sempre a necessidade premente de perceber os contextos onde observamos os jogadores. E neste caso, ele é influenciador das prestações tanto em jogadores de formação como em jogadores séniores. É importante perceber o contexto e aferir se o mesmo é potenciador das capacidades ou se porventura é nefasto à demonstração plena do seu potencial. A análise do estado atual de um jogador é redutora em relação à informação pretendida para balizar apostas nos jogadores, principalmente em níveis competitivos profissionais. É necessário ter dados que nos indiquem a capacidade para o jogador se adaptar a diferentes contextos. Em suma, acredito que a profissão e as tarefas aliadas a ela, estejam em linha com uma constante atualização de informação. Tal como um médico ou um advogado precisa de se atualizar relativamente a novos procedimentos terapêuticos e legislativos, um observador deverá ter o mesmo tipo de postura consoante a sua matéria de análise. O conhecimento prévio dos jogadores e das equipas, aliado a uma análise atualizada e permanente, permitirá uma melhor previsão do potencial futuro do atleta. Portanto, não há uma duração prevista para a observação de um jogador, sendo preciosa a informação ao longo dos diferentes momentos da sua vida desportiva.
STAR – Cada posição requer características específicas, mas existirá uma que seja comum a todas e que seja bastante procurada atualmente?
JM – Acredito que a maior virtude de um jogador deverá ser sempre, a paixão que nutre pelo jogo. Este aspeto poderá ser menosprezado, até porque temos a ideia de que se alguém joga é porque gosta e sente prazer na atividade. No entanto, ter paixão pelo jogo ultrapassa este sentimento, fazendo com que o atleta seja capaz de se transcender permanentemente, procurando melhorar a cada dia, independentemente do estatuto ou nível em que se encontra. Não sendo um aspeto muitas vezes associado às análises dos atletas, creio que a sua importância vai além das questões técnicas, físicas ou táticas. A capacidade de adaptação depende em muitos momentos, deste tipo de característica. A vontade de treinar e melhorar de forma constante, aliada à resiliência própria de cada atleta, levará a uma maior capacidade de contornar e ultrapassar momentos menos positivos que todos acabam por ter. É óbvio que depois podemos elencar um número infindável de características para cada posição, nível competitivo, faixa etária, etc. Frequentemente, as estruturas definem quais as características que pretendem ver nos seus jogadores. Características estas que devem ir de encontro a um modelo de jogo (e jogador) assumido pela própria estrutura. No entanto, creio que, em posições do sector defensivo, ou até mesmo médios com características mais defensivas, podemos pensar na consistência, na mentalidade competitiva, na solidez e fiabilidade, como características fundamentais. Já do ponto de vista ofensivo, procuram-se atletas com capacidade para criar, onde a criatividade, capacidade nos duelos de um para um, virtuosismo, ritmo e produtividade sejam pontos presentes nos jogadores destas posições.
STAR – Falou na importância de observar “o outro lado”. Qual a preponderância do lado humano na contratação de um jogador?
JM – É cada vez mais importante perceber o lado humano dos jogadores, o que por vezes “escapa” à observação direta do comportamento em jogo. A relevância dos departamentos de observação aumenta devido à importância que cada vez mais as estruturas dão a este aspeto. Sabemos perfeitamente que cada vez mais temos acesso a um número considerável de dados, sejam eles qualitativos ou quantitativos sobre a prestação individual e coletiva dos jogadores e equipas. Mas também sabemos que esta prestação é condicionada por diversos fatores, muitos deles pouco relacionados com fatores internos das próprias equipas. Ou seja, é óbvio que o ambiente familiar e o contexto social do jogador acaba por ter influência no desempenho em campo. Quando falamos em contextos profissionais, onde o investimento em determinado jogador é considerável, devemos perceber se o comportamento social se torna um fator de risco, ou se porventura, a estabilidade demonstrada fora do contexto profissional, é um facto capaz de ajudar à demonstração plena de todo o seu potencial. Encaro esta realidade como uma bolsa de valores. O investimento em determinada empresa deve ser avaliado consoante os prós e os contras, percebendo de forma antecipada os fatores de risco que podem influenciar negativamente esse investimento. A perceção do lado humano é fundamental. A tal capacidade de adaptação que falei anteriormente, assume um papel de relevo no entendimento de um jogador. Não querendo individualizar, até porque cada situação é única e normalmente influenciada por diversos fatores, posso dar o exemplo de um jogador de topo, o Di Maria, que teve sucesso em todos os clubes por onde passou, no entanto, o seu rendimento não foi igual no Manchester United. A própria mulher confirmou essa realidade. Fosse o clima, as pessoas, a cidade, ou outro motivo qualquer, ninguém pode ter dúvidas de que este fator influenciou o seu rendimento.
STAR – Qual considera ter sido a principal mudança que resultou no melhoramento significativo do trabalho de “scouting” ao longo dos últimos anos?
JM – Para mim, a mais importante foi os clubes perceberem que o “scouting” é necessário e quase obrigatório para quem pretende manter-se em níveis altos de exigência. É fundamental que os clubes percebam que não estão a gastar dinheiro em recursos humanos e tecnológicos, mas em algo que poderá trazer rentabilidade no futuro. A informação não é usada de forma imediata, muitas vezes só é utilizada anos depois, mas é importante perceber o que aconteceu desde então para tomar uma decisão depois. O que acontecia era o “scouting” ser apenas necessário em momentos de contratação de jogadores. No entanto, não encaro isso como um trabalho consistente que dotará o clube de informação relevante, mas apenas como o colmatar de uma necessidade que se abre em determinada altura. O “scouting” deve ter inerente o pensamento a médio/longo prazo e, hoje, é utilizado não apenas no recrutamento de jogadores mas também, numa outra área de análise e observação da equipa e dos adversários, como uma ferramenta adicional para a equipa técnica monitorizar a própria equipa, mas também preparar de forma estratégica os jogos. A melhor definição de “scouting” é recolha de informação, mas informação que se possa utilizar, tanto em recrutamento como em análise de adversários. Existem diversas plataformas que permitem ter acesso a informação valiosa, que deve ser usada de forma criteriosa e com determinado objetivo. Tanto no scouting mais direcionado para o recrutamento de jogadores, como no scouting com a perspetiva de observação e análise de equipas (que pode mesmo ser, da própria equipa), existem neste momento ferramentas que nos dão de forma quase imediata, informações relevantes do comportamento/performance dos atletas. Tanto os dados quantitativos como qualitativos têm a importância que lhe queiramos atribuir. O importante é perceber qual a relevância dos mesmos para o nosso trabalho. Neste momento, todos os dados são importantes e servem de base à tomada de decisões. No caso do recrutamento dos jogadores, é frequente os observadores chegarem aos diferentes locais de observação in loco com um grande conhecimento sobre os jogadores, servindo este tipo de observação como um acrescento de informação para a validação de determinado avaliação. No fundo, o cruzamentos dos dados de várias fontes torna-se imprescindível, sendo cada vez mais obrigatória para quem trabalha onde o detalhe limita o sucesso ou insucesso.
STAR – Portugal é uma referência também no “scouting”, talvez associado ao rótulo de país potenciador de talento. Com a saída precoce desse talento para o estrangeiro, é maior a tentação dos “scouts” para fazer o mesmo?
JM – Tenho uma perspetiva diferente. Os clubes é que sentem necessidade de ter scouts/observadores aqui em Portugal. Por exemplo, dificilmente um “scout” português irá trabalhar para Itália, mas já é mais provável trabalhar para clubes italianos no próprio contexto português. E isto é facilmente percetível quando abordamos a importância do conhecimento do “lado humano” do jogador. Há necessidade de os clubes grandes da Europa colocarem pessoas neste contexto para chegarem a mais informações sobre os jogadores, de forma antecipada e do ponto de vista local. Um “scout” pode viajar pela Europa inteira, mas vai lá acompanhar os jogos. Retira-se sempre muita informação, mas a mais válida será a que vem do acompanhamento diário, inserido no próprio contexto. Se há a possibilidade de os clubes terem pessoas nesses próprios contextos, terão essa informação de certeza, daí haver cada vez mais portugueses a trabalhar para clubes estrangeiros. Não podemos esquecer que o jogador português e o talento que existe em Portugal se tornou apetecível para as melhores ligas e para os melhores clubes europeus. Conhecer e acompanhar a trajetória evolutiva do jogador, da forma mais precoce possível, é uma vantagem que ninguém quer perder neste momento.
STAR – Tem experiências como treinador. Tendo em conta a preponderância do “scouting” nos clubes portugueses, em concreto, acha que um “background” nessa área poderia ser interessante no treinador do futuro?
JM – Creio que a função de gestão será cada vez mais associada ao líder da equipa técnica. Os departamentos são cada vez mais alargados, com especialistas em diversas áreas, então o treinador passará mais por um gestor dessas diferentes áreas. Quanto maior for a capacidade de esse gestor articular as diversas pastas, maior qualidade terá. Isto que estou a dizer foi um pouco da novidade que o José Mourinho trouxe ao futebol. Houve outros treinadores com este tipo de preocupações anteriormente, no entanto, a face visível da transformação do papel do treinador e da importância que as diferentes áreas devem ter na estruturação de todo o processo de treino, tem que lhe ser atribuída. Acredito que ele tenha tido influência de várias culturas onde isso já era uma realidade. O facto de ele ter sido adjunto de um treinador como Bobby Robson e ter passado por diferentes realidades ajudou a este tipo de entendimento. Esta importância dada às diferentes áreas de conhecimento, bem como a capacidade de trabalhar toda a informação a que tinha acesso, fizeram dele um gestor reconhecido mundialmente. Deste pensamento, urge a importância da análise e observação, onde temos como figura incontornável outro dos grandes treinadores nacionais (André Villas-Boas). Desta forma, não quero priorizar importâncias às áreas de conhecimento do treinador no futuro. Ter o domínio de várias áreas de saber será fundamental, mas a gestão e utilização apropriada da informação será o ponto-chave.