2ª PARTE COMPLETA DA ENTREVISTA
Na 2.ª parte da entrevista à Tribuna Expresso, André Villas-Boas critica severamente a situação financeira do FC Porto, que aponta à atual gestão, sublinhando que é uma “péssima mensagem” para os adeptos os prémios avultados pagos à administração. Fala ainda do seu modelo para a formação, do “ponto de vergonha” que é a ausência de futebol feminino sénior no FC Porto e da estranheza que lhe causa Sérgio Conceição ainda não ter renovado.
Como olha para a entrada de investimento estrangeiro nas SAD?
Para mim é o caso evidente da falência dos modelos operacionais anteriores. Para mim não é um passo para a modernidade e não o entendo como um passo para a modernidade, entendo como uma falência das gestões anteriores, que podem ter trazido sucesso desportivo mas acabaram por arrasar os seus clubes do ponto de vista financeiro, metendo a sua sustentabilidade financeira e a sua viabilidade e sobrevivência em causa. O recorrer a vendas de capitais e linhas de crédito não passa, no fundo, de tentar salvar anos de gestão que não funcionaram.
É o que está a acontecer ao FC Porto neste momento? Já olhou para o último Relatório e Contas da SAD?
No fundo, sim. O FC Porto juntou a sua dívida financeira €150 milhões de prejuízo nos últimos 10 anos e tem capitais próprios negativos de 175 milhões de euros. O que é um bom cenário futuro? É a nova regulamentação sobre o fair play financeiro que obriga os clubes a constantemente, anualmente, evoluírem sobre os capitais próprios. O estádio do FC Porto, por exemplo, ainda pertence ao seu clube e poderá ser transitado para a SAD e a partir daí haver logo um benefício em termos de capitais próprios, um pouco em linha com o que se passa no Sporting. Há maneiras de fazer os capitais próprios negativos do FC Porto evoluírem e não parecerem tão drásticos e chocantes como estão atualmente. Agora, o FC Porto tem um passivo absurdo e o que é claro é que os modelos operacionais que estão em funcionamento nos últimos 10, 12 anos não funcionam, porque levam o FC Porto a um ponto sem retorno e penso que é isso que deixa os sócios cada vez mais desgastados e a razão pela qual se revoltam. Eu acho que enquanto há normas e normativas externas ao FC Porto que obrigam o FC Porto a reformatar-se sob a boa governança, as mesmas não deviam ser só externas, deviam ser internas. E o FC Porto tem que se perspectivar daqui para a frente para uma nova fase da sua vida onde os seus modelos organizativos e operacionais funcionem de modo a que os mesmos tenham sustentabilidade dentro destes modos do associativismo, que é o que todos nós queremos.
Olhando para a equipa do FC Porto que levou à conquista da Liga Europa, há nomes como James Rodríguez, Falcao ou Hulk, jogadores desejados por outros clubes cá e que escolheram o FC Porto, dando depois retorno financeiro na venda. O que é que se passou daí para a frente para o FC Porto ter deixado de ter tanta capacidade de convencer estes talentos a ir para o Dragão e não para outros clubes?
Isso poderá ser um dos campos onde há muito espaço de evolução. O FC Porto sempre marcou a diferença pelo seu scouting, por encontrar os melhores nos diferentes sítios do planeta, nomeadamente na América do Sul, na América Central, e trazê-los para o FC Porto. Algumas situações destas ainda acontecem mas cada vez com menos frequência, muito provavelmente por perda de capacidade competitiva financeira, isso não há dúvida. Outra das razões é o crescimento monstruoso das estruturas que estão nos grandes clubes europeus. Ou seja, encontrar talento agora é muito mais difícil. Um Endrick ou um Vinicius Jr. neste momento já não fazem ponte num clube português, vão diretamente para o Manchester City, Real Madrid ou Barcelona. O acesso ao talento é cada vez mais competitivo e difícil, porque os outros clubes vão-se tornando cada vez mais fortes e poderosos e com redes de observadores e de scouts em todo o mundo. Acresce ao facto dos campeonatos brasileiro, mexicano e norte-americano estarem também eles em crescimento de valor e terem muito mais capacidade de reter talento em vez de os exportar. Antes nós competíamos a nível salarial ou oferecíamos melhores condições salariais aos jogadores brasileiros e vinham os melhores jogadores brasileiros para Portugal. Agora isso já não acontece porque o mercado brasileiro começa a pagar muito mais do que o mercado português. Temos que nos renovar sobre a nossa capacidade de scouting, as redes de scouting e saber precisamente onde é que nos podemos antecipar.
E acha que nesse sentido o FC Porto continua sempre a olhar para o Brasil, Argentina, Colômbia, México e deveria olhar mais para o Japão, África, etc?
Há outros mercados que podem crescer. Naturalmente a facilidade da língua aqui conta muito porque a adaptação é imediata e nós sempre tivemos mais facilidade em ir buscar seja latinos, seja brasileiros e incorporá-los dentro das nossas ligas. Eu acho que o crescimento vem muito dos países nórdicos, há cada vez mais um influxo dos jogadores dos países nórdicos. Mas eu continuo a acreditar que há talento em todo o lado. O que ganhou mais preponderância foi a capacidade dos clubes apostarem na sua formação e trazerem valor da sua formação e esse é um campo onde o FC Porto ainda pode evoluir mais e esperemos que evolua mais quando tiver a sua academia pronta.
Na sua preparação como é que arquitetaria o seu modelo de formação?
A formação obedece a um modelo muito específico que tem de respeitar valores e culturas do clube, mas deve estar totalmente independente do futebol sénior. A formação não deve obedecer a comportamentos de treino ou de estruturas do que se passa no futebol sénior. Aqui há uns anos havia a mania que todas as equipas de formação deveriam jogar como a equipa principal e depois acontecia que passado seis meses o treinador da equipa principal era despedido e vinha outro qualquer com um sistema diferente e as equipas tinham que obedecer de outra forma. Eu acho que os projetos de formação têm que obedecer a períodos de 12 anos, que é o tempo que demorará um jogador de 8 anos a atingir a sua maturidade e passar finalmente a profissional, esperando que o mesmo passe a profissional dentro da equipa que o formou. Para que isso aconteça, esses valores, não só de cultura de clube mas também de método, devem estar imutáveis e devem respeitar essa progressão. É quase como uma projeção da evolução dos jogadores desde a sua base até ao aspeto profissional. Isso é muito difícil de fazer, mas é mais fácil de fazer nos nossos clubes ou nestes clubes que permanecem dentro do associativismo, porque há uma certa identificação com a marca, com o símbolo, com a cultura, com os valores. O processo metodológico deve obedecer a essa progressão natural dos jogadores e projetá-lo sempre a 12 anos.
Vê-se que está muito atento ao mercado de diretores, portanto presumo que não o chocaria algo que ainda não vemos muito em Portugal que seria contratar um CEO dinamarquês ou um diretor de formação espanhol. Isso seria algo dentro do seu plano?
No aspeto da gestão das equipas isso poderia acontecer. No que toca ao aspeto desportivo eu acho que seria importante que houvesse uma identificação muito forte e um conhecimento muito forte da cultura do clube.
Faz falta, olhando para esse ciclo mais longo, uma espécie de nova Visão 611 para a formação?
Sim, mas diferente, bastante diferente. Em primeiro lugar não nos podemos esquecer da quantidade de anos que são necessários para recuperar do atraso que temos por causa da academia. Há um atraso evidente de infraestruturas e isso significa que os jovens atualmente não se encontram em condições de explorar ao máximo as suas capacidades, sejam pessoais, profissionais ou desportivas, porque também estão sempre em movimento em diferentes ambientes. Em vários escalões de formação os jogadores estão em movimento para arranjar o sítio onde se treinam, estão em diferentes infraestruturas. Não é que isso seja impeditivo para a formação de alguns, mas podemos formá-los muito melhor e muito mais rápido com acesso às melhores condições como um clube como o FC Porto necessita. Em primeiro lugar há aqui um atraso específico relacionado com a construção das academias e de quando é que finalmente o FC Porto vai ter acesso às melhores infraestruturas e quanto tempo é que demorará a montar essas estruturas. A partir daí há um projeto de formação que tem que ser cumprido e estipulado, principalmente um projeto metodológico. Nós temos a felicidade enquanto treinadores de futebol em Portugal de termos na nossa formação acesso à melhor educação e ao conhecimento dos melhores métodos e práticas do mercado. Uma criança agora que termina ou que está no seu 10.º ano quer ser treinadora de futebol, não quer ser jogadora de futebol. Isso acontece, por exemplo, nos meus sobrinhos que desde muito cedo desejaram ser treinadores de futebol, em vez de serem jogadores.
Voltando um bocadinho ao tema das contas. A questão dos prémios aos administradores, de 1,16 milhões de euros, mesmo sabendo que são referentes à temporada 2021/22, em que o FC Porto foi campeão e teve lucros, não passam uma má mensagem aos adeptos face a uma situação financeira tão grave do clube?
É uma péssima mensagem. O que deveria ter acontecido era a existência de ponderadores negativos, o que no panorama financeiro do clube do FC Porto retiraria todo e qualquer direito à premiação. O que me parece é que há ponderadores positivos que estão relacionados com a parte desportiva, que acabam por premiar os administradores quando o clube se encontra em ruína absoluta. O que é que acontece no FC Porto e que eu acho que tem levado à saturação das pessoas: há uma grande disparidade entre sucesso desportivo e desequilíbrio financeiro e isso corresponde especificamente à gestão da organização. O FC Porto tem gastos absurdos não só na sua massa salarial, mas também nos seus serviços externos, nos comissionamentos, na administração. Há uma série de poupanças que são evidentes e fáceis de fazer, havendo desejo para que as mesmas aconteçam. E acho que isso não aconteceu no caso desta administração. Mas, digo-vos sinceramente, o que mais me choca é a forma leviana e de bom tom e de cavaqueira com que se apresentam contas de 50 milhões de euros de prejuízo. Isso é grave e acho que é isso que leva à saturação atual porque não pode ser tão fácil e tão gozão apresentar umas contas destas. E é isso que leva à revolta das pessoas e a um desejo sentido de mudança. Todos nós enfrentamos dificuldades na nossa vida eu acho que nenhum de nós é capaz de na nossa gestão familiar endividar as nossas famílias a um ponto de não retorno porque o que todos nós queremos é o bem da nossa família, é o bem dos nossos filhos e projetar o desenvolvimento humano, pessoal e de riqueza dos seus filhos para o futuro. No caso do FC Porto estamos quase em ponto de não retorno. Havendo a continuação de uma gestão destas no futuro entraremos em ponto de não retorno, porque os ativos do FC Porto estão hipotecados, o estádio está hipotecado. Portanto, o Futebol Clube do Porto neste momento não é dos seus sócios: é dos bancos, é dos fornecedores, é dos clientes. As receitas futuras estão cada vez mais antecipadas, o que por si só também é uma prevaricação com o futuro do Futebol Clube do Porto. Eu entendo que haja players internacionais, como no caso da Legends, capazes de operar no mercado em termos comerciais e ter um poder de atração, explicação do projeto e poder antecipar receitas ao FC Porto ficando com os direitos e com a contraparte destas receitas futuras, o que poderá vir a acontecer neste acordo que o FC Porto poderá assinar. Mas será talvez o caminho mais perigoso a seguir porque depois já não resta nada. O único que faltará antecipar são as receitas televisivas futuras da centralização de direitos televisivos.
Pode dar exemplos de coisas que têm de ser mudadas no imediato?
Falemos do que é intocável: a obrigação de ser campeão. O FC Porto não pode construir um modelo só dependente das receitas da UEFA e televisivas. Tem de arranjar um crescimento de marca, maneiras de criar valor e de se organizar internamente para que, um dia, caso algum descalabro aconteça — particularmente uma não qualificação europeia —, o FC Porto possa sobreviver sem essas receitas. Estar, durante os últimos 20 anos, somente sustentado nas receitas da UEFA e nas vendas de jogadores ditou esta perda constante de valor até ao ponto quase de não retorno.
Como vê o facto de Sérgio Conceição ainda não ter renovado contrato?
Não deixa de ser surpreendente. É muito estranho, numa relação tão amorosa como a que o Sérgio tem com o FC Porto e que o seu presidente tem com o seu treinador, que ainda não tenha havido espaço para uma renovação. Teria sido de grande sentido de oportunidade fazer a renovação após o jogo com o Inter, não só pelo que ele representa para nós, portistas, pelo seu sucesso, mas também pelo sentido de oportunidade, já que é quando estamos mais isolados e tristes que pode surgir um abraço amigo e uma confiança no trabalho para o futuro. É uma pergunta que tem de ser feita ao presidente do FC Porto e ao treinador. Certamente responderão que o foco tem de estar no campeonato. Surpreende-me que ainda não tenha acontecido, desconheço as intenções do presidente e do treinador, porque eles não falam do assunto e é tabu há bastante tempo. Tenho pena que assim seja porque o Sérgio, além de tecnicamente muito competente, projeta os valores do FC Porto de uma forma única.
Que opinião lhe causam os quase divórcios regulares entre Pinto da Costa e Sérgio Conceição?
[Longo silêncio] … Acho que, naturalmente, uma pessoa que se vê, às vezes, isolada na gestão da organização se encontre, por vezes, em situações de poder absoluto e daí achar que é dona da comunicação da sua própria organização. Isto é muito normal nos treinadores, principalmente nas propriedades, já que, como o dono não está presente, a grande comunicação é feita pelos treinadores, visto que os CEOs ou presidentes não estão tão presentes na comunicação. Se a comunicação não for ditada a partir do topo, o treinador rege-a. Como conhecedor do fenómeno diria que esses desencontros têm a ver com a falta de comunicação interna. Dá-me a entender que, no FC Porto, a comunicação está perdida, faz-se a partir das vontades e desejos do treinador. Penso que não deveria ser assim, porque uma organização deveria obedecer a determinados parâmetros de comunicação e creio que as divergências internas acontecem por via de falta de entendimento comunicacional entre as partes.
Numa eventual presidência do André, imaginaria Sérgio Conceição a adaptar-se a essa mudança de paradigma na comunicação?
Estamos a entrar no campo do muito hipotético: de eu ser presidente, de ele ter renovado como treinador, são muitas hipóteses.
Mas no seu modelo organizativo…
No modelo organizativo que projeto, evidentemente, não poderia ser de outra forma, ainda por cima com a exposição a que o treinador está sujeito. Cabe ao clube defender, e não expor, o seu treinador. Há uma certa liberdade, por vezes, porque as perguntas são diferentes e os acontecimentos sucedem minuto a minuto, o que obriga o treinador a ter a capacidade de improviso. Posso falar-lhe das minhas experiências no FC Porto, entre o “miúdo” e o “graúdo” [referência a uma polémica com Jorge Jesus em 2010/11], que correspondem à minha forma e gosto por comunicar e ao que ia sucedendo…
… e também a tentar arranjar um inimigo externo, no caso com o Jesus?
Sim, no fundo é competição, e daí que a última pessoa de quem eu esperava receber mensagem no final da época [em 2010/11] era do Jorge Jesus. E recebi, o que iniciou uma bela amizade entre os dois graças à capacidade de separar o aspeto competitivo do respeito pelo profissional. Mas o objetivo das organizações, quando têm alguém tão mediaticamente exposto, é ter uma via comunicacional específica, orientada pelo topo, e esses são os caminhos que seguimos para a nossa organização.
Acha imperativo o FC Porto passar a ter futebol feminino sénior?
É importante haver estruturas para tal. No caso das modalidades, e na preparação de um candidato, é muito fácil ser populista e lançar as modalidades todas antes de saber se são possíveis. As modalidades, normalmente, são prejuízo para os clubes, um prejuízo aceite porque serve a sociedade, a cidade e a região. O FC Porto, enquanto instituição, deve promover o crescimento social e humano das pessoas, mas os modelos operacionais têm de funcionar, o ideal era que as modalidades fossem auto-sustentáveis. No caso do futebol feminino, é mais paradigmático porque corresponde a anos e anos de atraso e falta de visão e antecipação, o que poderá estar relacionado com a falta de infraestruturas para o receber. É uma urgência absoluta que se criem todos os escalões de formação, no FC Porto, no futebol feminino.
Sente que, ao não apostar no futebol feminino, e pegando nessa vertente social, o FC Porto está a falhar à região?
Sim, é um ponto de vergonha. E deveria ser um ponto de honra. Eu também vejo cada vez mais mulheres presentes no Estádio do Dragão e um universo e um público femininos cada vez mais ativos no FC Porto. A entrada no futebol feminino sénior terá de ser feita com uma equipa para ganhar.
O futuro próximo das competições europeias apresenta várias incógnitas. Falou da Superliga como “uma ameaça” e para o ano começará uma nova Champions. Como olha para o FC Porto neste contexto tão incerto?
O FC Porto deveria ter um papel fundamental nos locais decisores. Não me parece que o tenha feito na Associação Europeia de Clubes, por exemplo.
Ao contrário do Benfica [Rui Costa é membro da direção e Domingos Soares Oliveira fazia parte do conselho executivo].
Por exemplo. Há um papel preponderante a ter nas reuniões da UEFA ou encontros de presidentes, a nível nacional e internacional. A perda de competitividade de Portugal no nosso ranking está muito relacionado com o fator de multiplicação dos pontos atribuídos à Liga Conferência, mas agora recuperar a posição será difícil. O que se está a passar no futebol atual é muito disruptor. Apesar de haver entendimento na ECA relativamente à importância da FIFA e da UEFA como organismos máximos, nada nos diz que as propriedades não possam decidir voltar a avançar para a criação de uma Superliga.
Haverá uma decisão por parte do Tribunal de Justiça da União Europeia do caso Superliga em breve [a 21 de dezembro].
A UEFA capitalizou a falta de plano comunicacional por parte da Superliga aquando do lançamento, fazendo-o à meia-noite ou uma da manhã. Para nós, mais românticos do futebol, o que se registou foi a negação das pessoas desse modelo, o que se tornou na primeira vitória dos campeonatos europeus como os reconhecemos. Mas um proprietário dos EUA, saudita ou do Catar não sente essas restrições, aceita as penalizações — os jogadores irão aceitar ou não, mas encontrarão aqueles que aceitem. Há uma ameaça presente atual e gostava que o FC Porto tivesse tido outro papel nas decisões do futebol, tenho pena que não assuma tal preponderância e, se a está a assumir, que não a comunique de forma mais evidente com os seus sócios. Não podemos, depois, contra-argumentar se não estamos presentes nesses organismos decisores. O risco existe e parece-me claro que, no futuro, os nossos grandes de Portugal, e incluindo aqui clubes como SC Braga e Vitória SC, poderão sofrer muito com a criação de um fosso cada vez maior, ao mesmo tempo que entramos na centralização dos nossos direitos televisivos. Temos de perceber como é que criamos valores da nossa Liga, que tem sido marcada por problemas operacionais, logísticos, de arbitragem e escândalos sem fim. Como criamos valor de um produto que cada vez menos gente quer consumir? Isso ficou evidente no intervalo que o presidente da Liga atribuiu para a venda dos direitos televisivos, entre €250 milhões a €500 milhões, isto é, uma coisa ou metade dessa coisa. Numa altura em que os direitos franceses estão com dificuldades em serem vendidos, em que os italianos estão abaixo do valor e em que toda a gente consome entretenimento e há muitos players que captam a atenção dos nossos jovens.
A centralização dos direitos televisivos parece-lhe essencial? O presidente do Benfica já disse que, se se sentir prejudicado, não irá cumprir a lei.
Mas o Benfica tem tendência para estar acima da lei ou de prevaricar com a lei em várias situações, o que não pode acontecer. Há aqui um bem comum, em que as rivalidades têm de entender qual o bem comum de todos, da nossa Liga. Se formos incapazes de fazer isso estamos no caminho errado, portanto essa mensagem não é correta. Acho bem mais digna a atitude do SC Braga, apresentando alternativas a quadros competitivos, mesmo que não sejam aceites, mas lançando-as para discussão, do que essas tomadas de posição.
O que achou do Mundial 2030?
Buff… Gostava de ter recebido a candidatura de Portugal e Espanha como única. É o Mundial da Península Ibérica, foi construído e proposto dessa forma, ganhou o seu direito e foi escolhido como palco do Mundial. A introdução de mais um sem-número de países não passa de uma tentativa de atribuí-lo à Arábia Saudita em 2034. O futebol corresponde a estes interesses económicos de forma cada vez mais declarada, às vezes sendo refém dos mesmos. A aposta da Arábia Saudita através do desporto é evidente e clara, sendo que o mesmo já aconteceu com a China e terminou rapidamente. Esses países obedecem a certos comportamentos e culturas e quando se prevarica com esses comportamentos e culturas as coisas podem descambar, são países de uma sensibilidade diferente.
Esteve em 2017 na China a treinar.
Acabou por rapidamente se extinguir a aposta, por haver prevaricações com a cultura e por ser um campeonato onde a corrupção estava instalada e isso ficou evidente a nível federativo e de organização. Não quer dizer que seja o caso na Arábia Saudita, mas o facto de o mesmo fundo público ser dono de quatro clubes é um princípio de prevaricação com as regras normais de competitividade, legalidade e integridade no desporto. Quanto ao Mundial, parece-me uma solução encontrada para atribuir o seguinte à Arábia Saudita. Não recebi com tanto entusiasmo como recebi o Euro 2004.
Acha que esta incursão saudita também durará pouco, como na China?
Claro que as razões são financeiras, quem for para a Arábia Saudita mais vale admiti-lo. A Arábia Saudita começa, também, a ser inundada de formadores nas diferentes áreas: já chegaram os treinadores e os jogadores, vão começar a chegar os CEOs, diretores de formação, etc. Será um caso parecido com o que aconteceu no Catar pré-Mundial, em que houve 12 anos de investimento futebolístico. O que pode desequilibrar isto tudo são as diferenças dos quatro clubes do fundo soberano para os outros, com massas salariais muito diferentes, o que pode fazer com que esses se destaquem em 20 ou 30 pontos dos outros todos, levando à perda de interesse num fenómeno que deixa de ser real. É um processo novo, que contribui para a tal instabilidade e insegurança num futebol que se move por interesses financeiros específicos, penalizando as culturas.
Haverá mudanças na liderança da FPF em 2024. Pedro Proença e Luís Figo, dois nomes falados, seriam do seu agrado?
Penso que sim. Para já, como não houve anúncios de candidaturas, é difícil projetar equipas ou ideias. Neste momento, estaria um bocadinho mais preocupado com a Liga, em como estas mudanças podem trazer disrupção ao produto da Liga e, em consequência, ao FC Porto. São dois bons nomes, um com mais provas dadas na gestão e outro mais como referência do desporto, que naturalmente traria consigo equipas competentes.
Tem alguma relação, ou que relação pretende ter caso seja presidente do FC Porto, com Frederico Varandas e Rui Costa?
Agora não tenho nenhuma. Mas creio que destas cimeiras de presidentes da Liga têm saído bastantes debates sobre o futuro do futebol português e é assim que deve ser. Temos de ter capacidade de entendimento do fenómeno e do bem comum para todos e, se para que esse bem comum aconteça são necessárias reuniões mais ou menos assíduas com os outros presidentes, que assim seja.
Tem investido bastante tempo na sua fundação, quer explicar como funciona?
É uma ideia parecida com a Laureus, utilizando os embaixadores do desporto para ações sociais. A Race for Good é um facilitador para ter experiências únicas, que podem ser uma aula de surf com o Frederico Morais, sentar-se num carro com o António Félix da Costa ou o Sebastian Ogier, transformando essas experiências, de valor económico variado, em donativos, funcionando quase como um intermediário das instituições. E fazemos algo interessante: na primeira ação conjunta, o donativo obtido é doado em 50% à Race for Good para distribuição nas suas instituições e em 50% numa instituição à escolha do embaixador. A cada embaixador correspondem ligações emocionais a determinadas instituições, por exemplo o Miguel Oliveira é uma associação de Almada.
Pessoalmente, tem cumprido então o que queria desse lado da sua vida?
Vejo-o como uma obrigação e sentido de vida. Quando treinava o Marselha, no Rali de Monte Carlo comprei o espaço publicitário do carro vencedor do ano anterior em WRC 2 e decorei-o com a Race Africa, com o objetivo de aumentar a sensibilidade para o trabalho da Race Africa e, também, de atingir €6.000, o que me parecia um objetivo fácil de cumprir. A verdade é que não atingimos esse valor e as doações que arranjámos foi entre mim e os meus amigos, que metemos dinheiro para que a coisa não fosse tão má. Foi um tiro furado. Então resolvi mudar esta ideia, usando experiências a que as pessoas não têm acesso e que as tornam mais predispostas a doar. No caso do Rali de Portugal, vendi o espaço publicitário do meu carro a empresas e só aí conseguimos €75 mil de uma vez em donativos. No Dakar usei outra maneira, levando o nome das instituições no meu carro, o que resultou em zero donativos.
É mais fácil preparar-se para um Dakar ou para ser presidente do FC Porto?
Não tem nada a ver. O Dakar ia-me tirando a vida, mas salvou-me a vida ao mesmo tempo. Tenho um acidente à 4.ª etapa e sou retirado de helicóptero. Nas radiografias que fizemos, não se detetou a fratura que sofri na coluna. Na altura não era permitido que retomasse a corrida, mas agora já seria permitido retomar. Voltei para Portugal pensando que não tinha fraturado a coluna. Passando umas semanas da recuperação do espasmo muscular que sofri, liguei aos meus amigos e fui andar de mota. Mal arranquei, o assento da mota bateu-me no rabo e senti o impacto todo nas costas. Tinha a L1 fraturada. Tombei de dores, fiz exames e nesses exames, felizmente, a ressonância magnética detetou um tumor na tiróide, que tive de retirar imediatamente e que não teria sido detetado caso não tivesse havido o acidente. Há histórias curiosas. Felizmente, no Dakar não me deixaram retomar.