Casa nova na Constituição
A construção de uma fábrica obrigou o F.C.Porto a deixar o Campo da Rua da Rainha (que, entretanto, mudara de nome). Por 350 escudos por ano, mudou-se o clube para a Constituição.
Mais uma desfeita. Em finais de 1911 foi comunicado ao F. C. Porto que teria de abandonar o campo atlético da Rua de Antero de Quental, que fora o sonho grande, realizado, de José Monteiro da Costa, para que, em seu lugar se erguesse uma... fábrica. Entre ânsias e descrenças, avanços e recuos, lançaram-se hipóteses várias para a construção de um espaço onde continuassem, com o mesmo ardor e a mesma fascinação, os festivais de pesos e alteres, os concursos de atletismo, os encontros de ténis, os grandes desafios...
No dia 29 de Julho de 1912, a Direcção reuniu-se, enfim, para apreciar uma «proposta tentadora»: um terreno da Rua da Constituição, que dava bem para campo de jogos de futebol, ténis, sede e muito mais...
Que sim, que sim. Pelo que, nesse mesmo dia, ficou resolvido alugar o espaço proposto, por 350 escudos anuais perto de 30 escudos por mês e encetar as obras de imediato. Urgia.
Documentos oficiais apontam para a mudança feita no dia 29 de Setembro de 1912. De facto, a secretaria do clube começou a funcionar, na Constituição, no dia 4 de Novembro. Num barracão mal acomodado. Eram sinais dos tempos, indícios de um clube em crise, órfão do presidente mobilizador e, sobretudo, financiador.
Apesar de, oficialmente, o Campo da Constituição ter sido inaugurado com um torneio internacional de futebol, que decorreu entre 26 de Janeiro e 2 de Fevereiro de 1913, com a presença do Real de Vigo, Oporto Cricket, F. C. Porto e Benfica (que venceria), o primeiro jogo lá disputado opôs, a 1 de Janeiro, os portistas ao Oporto Cricket (clube que fornecia, amiúde, os seus jogadores ao F. C. Porto), cabendo a vitória aos ingleses, por 5-2.
No Torneio da Inauguração, contra o Benfica, derrota do F. C. Porto, por 1-3. Na final, apesar da vitória dos lisboetas, sobre o Vigo, mosquitos por cordas. E para além de escaramuças, uma crónica anti lisboeta, que fala de pacóvios, de desrespeito pelos «sportmen» do Porto e de senhores que «parece que comem gente»...
«Da parte do Vigo houve algumas rasteiras e pontapés propositados. O Benfica respondeu de igual modo, com violências e cargas à margem da lei do football. Chegámos a ver um jogador de Lisboa agarrar por um braço um espanhol, quando viu frustradas as tentativas para lhe tirar a bola.
Sejamos justos e não nos ceguem, nem o exagerado patriotismo, nem o partidarismo de clubes levado ao excesso.
Isto é tanto menos admissível, quanto o grupo espanhol tem menos peso do que o do Benfica e os seus jogadores são fisicamente mais fracos.
A extrema correcção de Cosme Damião e Fernando de Castro, capitães dos grupos, evitou, por vezes, conflitos que, em dado momento, se poderiam agravar.
Dois jogadores, um espanhol e outro português, caíram juntos em certa altura do desafio. Ainda no chão, o jogador espanhol deu, cremos que voluntariamente, um pontapé na cara do seu adversário. Este desforrou-se com um ou mais socos. Nesta confusão chegou a ser agredido por um sócio do Benfica, que dizem chamar--se Vieira, o simpático capitão do Vigo, Fernando de Castro, que nada tinha com o caso e apenas interveio no sentido de apaziguar.
É preciso, de futuro, que os senhores de Lisboa que aqui venham assistir aos desafios, se compenetrem de que, fora de casa, têm de ser delicados. Não se admite que façam dos jogadores e sportsmen do Porto a ideia que fariam de quaisquer ignorantes pacóvios que nunca tivessem visto mundo, e a quem continuamente assustassem com a frase: se fosse em Lisboa...
Esta frase, aplicada a propósito de tudo, fez dizer a um espectador portuense: Que diabo, os senhores em Lisboa parece que comem gente.
E é facto. Se fosse em Lisboa dão a perceber não teria ficado vivo um único jogador espanhol!»
A máquina de amputações, a noiva e o estrume
A propósito da inauguração do Campo da Constituição, antes ainda de saber no que daria o Torneio Internacional de Futebol (o primeiro disputado em Portugal) escreveria Botelho de Sousa, um dos mais notáveis jornalistas portuenses de então, crónica deslumbrante, retrato exótico dos primeiros passos de um clube que nem sequer imaginaria que destino estava a construir...
«A notícia da inauguração do novo parque de jogos do F. C. Porto trouxe-nos a deliciosa recordação de que, há bons 10 anos, trabalhara um grupo de sportsmen verdadeiros apaixonados pelo football, ao tempo cultivado por uma pequena falange de ingleses, para levar à prática a ideia da fundação de um clube portuense de football. Naquele tempo, repito, todos supunham uma rematada loucura tal iniciativa. Aquilo, dizia-se, era um jogo semelhável a máquina de amputações, onde as pernas se partiam e as canelas saíam mimoseadas com terríveis equimoses, mercê dos pontapés vibrados pelos adversários em defesa da bola!
Que luta, que trabalho extraordinário tiveram dois saudosos footbalers para convencer os nossos sportsmen de que o football, muito longe de produzir fracturas nas peças locomotoras, lhes dava resistente vigor! Após trabalho verdadeiramente notável, a todos os títulos, conseguiram, enfim, a constituição de um team e o arrendamento de um campo.
No domingo anunciado para a luta, o campo encheu-se de um público que, ignorando os princípios do football, supunha ir assistir a uma batalha entre doidos e que a arma empregada seria o pontapé. O match (!) decorreu tumultuoso. De quando em vez rolava pelo chão um português, impelido pelos encontrões dos ingleses.
Morram os bifes! Gritava o público que ocupava o lugar destinado aos peões.
Prega-lhe um pontapé na barriga! Ouvia-se doutro lado.
A bola andava numa dobadoira, com os formidáveis shoots vibrados pelos portuenses. Um dos forwards, atacando o goal, após impetuosa corrida, caíra, ficando com um joelho marcado pelo verde-negro do arrelvado e da terra lamacenta... Findo o match, uma massa de povo invadiu o campo, dirigindo-se para o local onde os footbalers se encontravam e com o olhar investigador procurava nas canelas dos rapazes as... negras.
Abandonam as bancadas e descem o campo algumas senhoras que para ali foram na intenção de mostrar as suas toilettes magnificentes.
Uma delas, elegante como uma miss, linda como uma... portuense, noiva do desastrado que caíra, acercou-se-lhe e, ao ver-lhe o joelho. Gritou: Ah! Alfredo! Podes ficar sem uma perna! Carinhosamente, com aquela candura que possuem as senhoras quando estão noivas (só quando estão noivas!), preparava-se para cuidar o ferimento, quando o Alfredo exclamava, furtando o joelho: - Oh! Não, meu anjo, não ponha a mão que cheira mal...
O campo fora estrumado dias antes!
In «abola»