Excelente entrevista sobre a regionalização
"Os diretórios dos partidos não estão nada interessados na regionalização", diz Valente de Oliveira
Foi sob a sua batuta, enquanto ministro do Planeamento de Cavaco Silva, que o Parlamento aprovou por unanimidade a lei-quadro das Regiões Administrativas, em 1991. Valente de Oliveira espera que Portugal volte a discutir a regionalização e acredita que, apesar da oposição dos aparelhos partidários, a opinião pública está mais esclarecida. Defende a revisão constitucional que elimine a obrigação de referendo - uma "artimanha" de Marcelo Rebelo de Sousa - e apela à participação dos cidadãos na vida nacional.
Passaram 20 anos desde o referendo à regionalização. Na altura, o tema tornou-se tóxico. Agora há condições para uma discussão mais tranquila?
É sempre oportuno discutir a regionalização. Hoje a população está menos aberta a chavões, está mais informada. Quanto aos decisores, um grupo grande vai reagir em função dos seus interesses pessoais. Sempre foi assim. O que há hoje é mais centros de informação e reflexão, mais contraditório. Há condições para que o debate tenha outro nível, seja mais elevado.
Na campanha para o referendo, a regionalização chegou a ser comparada ao apartheid
Fiquei surpreendido negativamente com o nível baixo da discussão. Disse-se muita tolice, mas os diretórios dos partidos não estão nada interessados na regionalização, porque perdem algum controlo sobre o pessoal político que recrutam para a Assembleia da República. No fundo, essa é a razão de grande parte dos argumentos fantasiosos. Como o argumento de que não temos dinheiro para sustentar uma administração regional, como se fôssemos contratar hordas de pessoas! Temos o pessoal das Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional e as direções regionais têm de ser envolvidas no esforço de desconcentração, em articulação com os órgãos centralizados.
Costa e Rio assinaram um acordo que refere a criação de regiões. Em outubro, continuarão, ou não, à frente do PS e do PSD. E o presidente da República já mostrou abertura para discutir o tema. Esta é a ocasião certa para os comprometer?
Não é bom fazê-lo na véspera de uma campanha eleitoral, quando a discussão está focada nas escolhas de deputados. Não se vão amarrar a nós que não possam desatar. Numa perspetiva académica, o melhor era discutir quando não há interesses pessoais em jogo. No fundo, os grandes oponentes [da regionalização] são sempre os que estão instalados.
Nessa lógica, nunca se faria uma regionalização...
É por isso que tem de ser um objetivo nacional. Não se esqueça que há uma lei-quadro da regionalização, fui eu quem a preparou e discutiu na Assembleia da República, onde foi aprovada - note - por unanimidade, em 1991.
O que aconteceu entre 1991 e a revisão constitucional de 1997, que impôs o referendo?
O PSD tomou-se de pânico em relação às eleições de 1995, dizia: "Isto não pode continuar, perdemos o comando!" E os outros partidos alinharam. Foi o diretório partidário. Se pensa que o PS do Dr. Mário Soares era regionalista, esqueça. E o Partido Comunista só pensa em poder centralizado na sua comissão política.
Acredita que os partidos vão travar a regionalização?
Os partidos vão todos dizer que são a favor, mas fazer tudo para que se faça de conta que vai acontecer através da descentralização, que tem os seus limites: o dinheiro para os municípios e o tipo de funções. Os nossos municípios vêm do século XIX e são muito melhores do que os espanhóis e os franceses. Mas há assuntos que exigem escala: educação, saúde e transportes. Por exemplo, na organização da saúde, temos de perguntar quais são os modelos mais adequados para cada região. E não é só uma questão de modelos físicos. As próprias formas de explorar o serviço têm de ser articuladas, à escala regional. O município não tem meios para esta tarefa.
As Comunidades Intermunicipais e as Áreas Metropolitanas podem ser uma alternativa às regiões administrativas?
Não, por causa da coordenação geral. É preciso ir sempre aos recursos, aos recursos humanos. Há 60 anos, não havia um arquiteto em Trás-os-Montes! Em todo o mundo, nos últimos cem anos, houve uma mudança da fixação junto de uma faixa 150 quilómetros do litoral de 30 para 70%. A população não gosta do interior e vem sempre à procura de emprego.
Faz sentido rever a Constituição para eliminar a obrigação de referendo?
Faz. Aquilo foi pôr uma rolha no processo! Uma artimanha de um jurista competente, que hoje é presidente da República, uma habilidade de um constitucionalista, para pôr um ferrolho nisto e nunca mais se falar.
Com a concordância de Guterres.
Esse foi o encomendador. Ele não queria meter-se no sarilho... Na noite do referendo, o eng. Guterres disse: "Ponto final, não se fala mais nisto!", como se fosse uma zanga com miúdos. Uma revisão constitucional é indispensável. A Constituição está incoerente: mantém o artigo que prevê a criação de regiões administrativas e depois obriga a referendar com um duplo sim. A regionalização está fechada a sete chaves.
A opinião pública está hoje mais aberta à ideia?
Acho que sim, já viu que o contrário não leva a nada. A não existência de regiões é um mau caminho, só agravou as assimetrias regionais e de nível de vida. É por via negativa que as pessoas lá chegam. Mas devem envolver-se mais
A abstenção foi de 52%, o referendo não foi vinculativo...
As pessoas não se interessaram.
Na altura foi prometido descentralizar, mas, 20 anos depois, não se evoluiu. Os portugueses foram enganados?
Os portugueses têm muita culpa em deixar-se enganar. Põem-se a jeito para se deixarem enganar.
O que seriam as regiões autónomas dos Açores e da Madeira sem governos regionais?
No referendo, perguntavam-se se eu queria mais Madeiras e Açores e eu dizia: "Quero". A autonomia regional foi transformadora das duas regiões, mais da Madeira, mas também dos Açores, já que num arquipélago disperso é mais difícil fazê-lo. Não foi tudo feito corretamente: na parte material foi feito mais do que o possível. Mas um dia vai fazer-se justiça ao dr. Alberto João Jardim.
E no continente, o ideal são as cinco regiões plano?
Se tivéssemos ficado com as cinco regiões há 20 anos as pessoas tinham votado "Sim".
O mapa com oito regiões, acordado pelo PCP e o PS, foi uma outra forma de armadilhar a regionalização?
O PCP estava aflito porque não dominaria nenhuma região e estava convencido que, assim, dominaria a região de Beja. E o PS tinha gente que queria ser presidente de regiões mas que sabia que, se fossem grandes, não chegava lá. Houve muita estratégia pessoal e partidária a comprometer uma coisa que devia ser mais elevada.
O interesse pessoal e partidário dinamitou a regionalização?
Não sei se dinamitou, na política as causas são sempre muitas... A principal foi o indiferentismo. As pessoas estavam-se nas tintas para discutir o país, como estão agora. Gostava de ver em torno da política o entusiasmo que vejo em torno do futebol. Seríamos um país fantástico.
in:
https://www.jn.pt/nacional/interior/os-diretorios-dos-partidos-nao-estao-nada-interessados-na-regionalizacao-diz-valente-de-oliveira-10730604.html