Fernando Gomes
Com o ano 2000 à porta e em pleno reinado de Jardel, a grande referência do FC Porto, no que a pontas-de-lança concerne, continua a ser Fernando Gomes. As duas Botas-de-Ouro continuam em destaque na casa de Miramar, ou não tivessem sido os golos a única razão desportiva da vida do antigo camisola nº 9. Para ele, quem se distingue é quem falha menos e as suas memórias recuam até aos tempos de futebolistas ilustres. Estilo, elegância e, claro, eficiência nos terrenos decisivos são os grandes argumentos de uma raça que não está em vias de extinção mas conhece um nítido período de vacas magras.
O esgotar do século trouxe maior protecção aos artistas da grande área, dantes as marcações eram assassinas e sem contemplações e a incursão no passado não o preocupou. O 25 de Abril encontrou-o no Liceu Alexandre Herculano, preocupado com o futebol e já quase à porta da equipa principal do seu clube de sempre. E não conseguiu reprimir um lamento comedido: Fui para o Sporting porque o FC Porto não me quis.
Artur Jorge e João Pinto dedicaram-me a vitória de Viena
Sabe, quem falha menos é quem mais se distingue. O ponta-de-lança está lá, vai a todas e, claro, tem mais oportunidades para marcar golos. Trata-se de uma posição que foi e será sempre difícil, razão por que nunca digo que agora é mais ou menos fácil, que as marcações são mais ou menos rigorosas. Lá, na área, nunca existem facilidades. Talvez haja hoje mais rigor em termos globais, mas pouco mudou naqueles poucos metros de terreno. Eu, por exemplo, tinha um estilo muito diferente do Eusébio, que foi o melhor de todos nós, o mais completo e talentoso. O Gerd Muller talvez tenha sido o mais eficiente num palmo de terreno, Van Basten certamente o mais elegante e mais versátil, enfim, homens que cito de cor, que admiro e que tinham, como eu, uma característica comum: todos marcávamos muitos golos.
Em Miramar, numa tarde de chuva incómoda e vento agreste, Fernando Gomes acedeu a revisitar as suas memórias. Falo pouco, não procuro a evidência, mas trata-se, de facto, de um fim de século que tem muita coisa para contar. A política nunca foi o meu forte, o 25 de Abril apanhou-me no Liceu Alexandre Herculano, já muito preocupado com o futebol, mesmo que me tenha tocado como tocou muitos portugueses. Mesmo assim, prefiro olhar para o Portugal de hoje, um país evoluído e que caminha num passo igual a todos os outros, na Europa e no Mundo.
Fui um homem feliz na profissão que escolhi, no FC Porto, no Gijon, no Sporting e na selecção nacional. Fui para Espanha através de um processo normal de transferência de um jogador, como tantos outros, para o Sporting porque o FC Porto não me quis. Mas são coisas que aconteceram há já muitos anos, nesta altura prefiro olhar para o meu clube, que continua a ganhar e se projectou como a maior força do futebol português. Que diferença relativamente ao ano em que fomos campeões, depois de dezanove sem ganhar! Passámos de nortenhos a nacionais, coisa que hoje nem sequer se discute, em Portugal e no estrangeiro. O clube está organizado, servido de dirigentes capazes, trata-se, de facto, de um fim de século de glória azul-e-branca.
Gomes parece um homem frio
mas não o é, definitivamente. Aqui, nesta sala, comovi-me quando ouvi o Artur Jorge e o João Pinto, em Viena, a dedicarem-me a vitória na Taça dos Campeões Europeus. E o desfile pelos Aliados, hoje normal porque acontece com muita frequência, também ocupa um lugar muito especial nas minhas memórias. E, claro, não nos podemos esquecer de Basileia, da nossa mística dos anos oitenta e de um espírito que era quase de família. Jogadores, treinadores, dirigentes
éramos mesmo uma família, acredite. José Maria Pedroto era uma personagem quase consensual, que percebia muito de futebol. Adiantado em relação ao seu tempo, teve em Pinto da Costa um homem que soube perceber rapidamente as suas ideias. Artur Jorge foi um excelente continuador.
E Saltillo? Que influência terão tido os acontecimentos mexicanos, há já mais de 13 anos, no actual futebol português?
Eu acho, hoje e olhando para trás, que todas as partes tiveram culpa. Mas também julgo que foi nessa altura que o futebol deu os primeiros passos para ser o que é neste fim de século. Terá, na altura, faltado diálogo e alguém mais frio para juntar as sensibilidades em confronto. Coisas boas e más, afinal, como sempre acontece, acontecendo que nos dias de hoje há coisas parecidas, se calhar feitas de maneira diferente.
Quarenta e oito horas antes (21/09/99) da conversa com o inesquecível futebolista, o FC Porto tinha recebido e vencido (2-0) o Olympiakos, naquela que foi a segunda vitória consecutiva dos Dragões na presente edição (1999/2000), da Liga dos Campeões. E como, afinal, a vida se faz mais de presente e futuro do que de passado, Fernando Gomes não conseguiu disfarçar o seu entusiasmo e optimismo: Jogámos bem, numa noite com muito vento e muita chuva, com uma exibição muito conseguida. Estive lá, como sempre, porque o FC Porto é o meu clube, a equipa, a minha equipa e sinto as vitórias como se ainda lá andasse. E fico feliz por ver que os avançados de hoje estão mais protegidos, que as marcações violentas são punidas com maior severidade. No meu tempo, a violência era terrível para os homens da grande-área e para os artistas do futebol. Outra diferença positiva prende-se com a decisão da UEFA de apenas punir os jogadores com um jogo de suspensão ao terceiro amarelo, protegendo o espectáculo e conseguindo, assim, levar mais gente aos estádios. Às vezes, ainda me custa ver os árbitros assistentes arrancarem foras-de-jogo duvidosos, mas está tudo muito melhor. Uma das minhas memórias, neste caso uma má memória, é a forma como muitas vezes me marcaram, com agressões que passavam em claro. Mas, mesmo assim, tive sorte, quando penso, por exemplo, no caso de Marco van Basten, que terminou a sua carreira quando ainda tinha muito para dar ao futebol, por força da forma impiedosa como foi marcado, sofrendo lesões que ninguém conseguiu curar.
Serenamente, Fernando Gomes vive a sua vida, provavelmente à espera do momento certo para voltar ao futebol. E guarda as suas memórias quase a sete chaves. Mas, neste fim de século, acedeu em recordar as coisas que entendeu, sem entrar em polémicas, mesmo que não tenha conseguido evitar o desabafo, muito breve, referente ao processo que o levou das Antas para Alvalade. Com a camisola do Sporting, o avançado continuou a marcar golos, a sua maior arte. Mas foi nas Antas que fez história, nas Antas e nos relvados de todo o mundo onde esteve com a camisola do FC Porto. E, nessa coisa dos golos, Gomes terá, forçosamente, que fazer a unanimidade. Com ou sem memórias.
SEGREDOS
Toninho Metralha e a calma de Pedroto
Quem trabalhou com José Maria Pedroto tem, obviamente, coisas para contar de uma personagem muito especial do futebol português. Fernando Gomes, que nunca escondeu a sua admiração pelo saudoso Zé do Boné, não podia fugir à regra. E contou a O JOGO um episódio que aconteceu entre o treinador e o avançado brasileiro, pouco depois da chegada às Antas do futebolista: O Toninho Metralha, pode dizer-se, chegou, viu e venceu. Fez treinos espectaculares, fartou-se de marcar golos e prometeu muito. Pedroto tinha avalizado a contratação e era um homem feliz. E Gomes chegou à parte curiosa: Uma manhã, com Pedroto na linha lateral, como sempre fazia, teve lugar um treino de conjunto e a certa altura o Toninho Metralha começou a correr com a bola dominada, e o mister começou a gritar: Cruza! Cruza!. O brasileiro continuou a correr, Pedroto a pedir o cruzamento e, a certa altura, Metralha decidiu-se por um remate fulminante, de ângulo incrível
e impossível, fazendo um golo fantástico, numa atitude que não tivera nada a ver com o que lhe tinha sido pedido. Pedroto, bem à sua maneira, suspirou e disse baixinho: Pronto, também está bem....
Epopeia de Viena vista e sofrida em Miramar
Tendo participado em todos os jogos da Taça dos Campeões Europeus de 1986/87, Fernando Gomes perdeu o mais importante: a final de Viena foi vista pela televisão na sua casa de Miramar, com uma perna partida e, certamente, muita angústia na alma.
Mesmo assim, o antigo goleador não dá menos importância à epopeia europeia austríaca: Como já disse numa parte da nossa conversa, a vitória de Viena apenas tem paralelo na conquista do campeonato nacional depois de dezanove anos de jejum. E isto pelo que representou para o clube ser campeão, já que a vitória na Taça dos Campeões tem, naturalmente, uma dimensão muito maior e funcionou como o decisivo factor de arranque do FC Porto a nível internacional. Vi o jogo aqui nesta sala, sentado neste sitio e foi uma noite inesquecível, muito mais sofrida do que se estivesse a jogar.
Quase sem dar por isso, Fernando Gomes juntou a noite de glória à final de Basileia, quando a Juventus derrotou o FC Porto: Tratou-se da primeira presença do clube numa final da UEFA, já com José Maria Pedroto muito doente e ainda hoje penso que fomos infelizes e superiores ao nosso adversário. E, afinal, não demorou muito tempo até a situação se inverter. Maio de 1987 ficou na história do clube e já ninguémse admirou quando, logo a seguir, vieram as vitórias na Supertaça Europeia e na Taça Intercontinental.
FC Porto mais constante em 1985 e mais genial na Taça dos Campeões
Posso dizer que joguei sempre com grandes jogadores e em grandes equipas, só assim poderia ter marcado tantos golos, durante tantos anos. Diria que as grandes memórias do século XX são os futebolistas extraordinários com quem convivi. Com Pedroto, houve um período dourado do FC Porto, Cubillas, Oliveira, Duda, Octávio, eu sei lá
.
E, por muito pragmático que um homem seja, a saudade está sempre presente: Depois, com Artur Jorge e já com o Futre no FC Porto, fomos mais constantes em 1985, quando eliminámos o Ajax de Van Basten, Riijkaard, Koeman, Silooy, Vant Schip, treinado por Cruyff, na Taça dos Campeões. Em 1987, o FC Porto era, digamos, mais genial, porque havia o Madjer, um homem que fazia, se calhar, o que mais ninguém fazia.
De caminho, um olhar para outros sítios por onde passou: Na selecção, claro que o Campeonato da Europa de 1984 foi, para mim, o ponto mais alto, com Chalana, Jordão, João Pinto, Frasco, Bento, Lima Pereira e tantos outros. E também estivemos no Campeonato do Mundo, dois anos depois. No Gijon e no Sporting a qualidade também era muita, por isso é que digo que não me posso queixar e as memórias são, na generalidade, muito boas.
Eu também tratava o Rui por senhor Rui
Fernando Gomes aceita que, agora, os tempos são outros. No seu, quando começou a jogar na primeira categoria do FC Porto, as hierarquias respeitavam-se e a antiguidade era um posto. Leu o que Eusébio disse nas memórias do seu século e estabeleceu analogias: Não me espantei nada quando li que o Eusébio tratou o capitão do Benfica por senhor Águas, quando lhe pediu que o deixasse marcar o livre na final com o Real Madrid. Eu tinha dezanove anos quando cheguei à primeira categoria do FC Porto e, por exemplo, também chamava ao Rui, um dos nossos guarda-redes, senhor Rui. Hoje nada disso é assim, não sou contra nem a favor, desde que todos se respeitem. Há muitas histórias dessas para contar que, afinal, nem histórias são, porque era mesmo assim.
E o século XXI?
Falar de um novo século tem que ser, forçosamente, falar de optimismo e de esperança em dias melhores. Timor, questão de grande actualidade, faz-me estar de corpo e alma a favor de um povo sacrificado e martirizado que merece melhor sorte. Mas, não é só Timor, mesmo que seja o que nos toca mais directamente, porque há, por esse mundo fora, muita gente a sofrer. É preciso diálogo e compreensão para se acabar com as injustiças.
E Fernando Gomes também deseja muita coisa boa para o futebol português e, claro, para o FC Porto: Sei que há muita vontade, da parte de muitas pessoas, para mudar muito do que está mal no futebol português. E, se for assim, será uma questão de reestruturar, estabilizar e
disparar, porque a qualidade que sempre existiu nem sequer se discute. Situações financeiras estáveis, gestão adequada e atenção à formação serão as soluções óbvias, porque teremos sempre grandes jogadores. O Campeonato da Europa de 2004 é mais uma das grandes ambições, que muito ajudará o desenvolvimento do nosso futebol se a UEFA escolher Portugal.
E Gomes sente que o novo século vai ser o seu regresso activo: Sempre disse que só poderia estar no FC Porto ou na selecção nacional, sem nunca falar de cargos ou de responsabilidades. E estou sempre disponível, desde que seja para fazer o que julgo estar ao meu alcance. Finalmente, não posso de deixar de pretender para o meu clube um início de século tão bem sucedido como o que aconteceu, digamos, nos últimos dez/quinze anos, porque o FC Porto tornou-se na maior força do futebol português e um dos mais importantes cartazes de Portugal no mundo inteiro. O Porto a ganhar é o meu sentir e o arranque deste ano na Liga dos Campeões é um óptimo sinal para que se possam, eventualmente, repetir as jornadas de Viena e de Tóquio. É, afinal, o que eu mais desejo para o século XXI.