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EDO BOSCH: JOGAR AQUI FOI UM SONHO QUE DUROU MUITO TEMPO
Recorde aqui, na íntegra, a entrevista ao antigo guarda-redes do FC Porto na edição de junho de 2016 da revista Dragões
O guarda-redes avisou logo de início: esta era a entrevista mais difícil da carreira, porque tinha como pano de fundo a despedida do FC Porto, 18 anos depois de ter chegado ao clube, vindo do Noia. Em vários momentos, os olhos do catalão humedeceram-se: quando recordou os melhores momentos e se lembrou dos anónimos que lhe têm dito obrigado, quando falou de grandes amigos como Franklim e Nélson Filipe e quando imaginou defrontar os azuis e brancos na próxima época, em que vai representar a Juventude de Viana. Mas a despedida é feita com um sorriso: Quem tem de agradecer sou eu, confessa Edo, que deixa o clube como um dos estrangeiros com mais anos consecutivos a envergar a camisola azul e branca. Dezoito anos é um número impressionante em qualquer modalidade e país.
Qual é o seu sentimento atual, quando sabe que esta ligação vai terminar dentro de dias?
É muito complicado. Digo sempre que jogar aqui foi um sonho que durou muito tempo. Aqui ouvi falar da cadeira de sonho e para mim o FC Porto foi isso [emociona-se]. Tenho de dizer obrigado ao clube, adeptos, colegas e funcionários. Só tenho de agradecer, nunca pensei que a minha carreira aqui durasse tanto tempo e teria que chegar o dia do fim, como acontece com qualquer desportista. Estes últimos meses foram mais complicados, mas é normal. Cruzo-me com muitos adeptos e ouvir a frase obrigado por tudo, vinda de gente que não conheço, deixa-me emocionado.
Assinou o primeiro contrato com o FC Porto a 7 de julho de 1998 e conta que, quando Ilídio Pinto [antigo vice-presidente, responsável pelo hóquei em patins] lhe ligou, achou que era uma piada. Qual era então a expetativa?
Estava em casa, era hora de almoço, isso ficou-me marcado. Falaram-me num espanhol meio estrangeiro [risos] e como andava a receber várias ofertas e comentava isso com amigos achei que era uma brincadeira deles. Depois vi que era mesmo a sério e ainda bem. A minha expetativa era ficar dois ou três anos. Queria dar o salto para um clube grande e em Espanha estava tapado por grandes guarda-redes, pelo que tive a sorte de o FC Porto se cruzar no meu caminho. Juntou-se a fome com a vontade de comer, porque me identifiquei muito com o sentimento do clube e por isso fiquei tanto tempo. Não consigo jogar a feijões, para mim o desporto tem de ser sempre para ganhar e dar o máximo, e isso faz parte do emblema do FC Porto. Não se lê isso, mas qualquer jogador do clube tem de o saber e os que entendem são os que perduram. Chegar ao FC Porto não é uma meta, mas um princípio.
Disseram-lhe logo isso sobre o FC Porto ou percebeu por instinto?
Percebi, sobretudo através do presidente, que desde o princípio deixa claro que o que se quer no clube não é jogar, é ganhar. E depois os colegas, os mais velhos na altura, como o Tó Neves e o Paulo Alves, deixaram isso claro. Ainda bem que o percebi, porque acho que graças a isso consegui chegar um bocado mais longe na carreira. Puxaram por um instinto ganhador que não tinha tão desenvolvido.
Foi logo campeão nacional na primeira época, com António Livramento como treinador, após oito anos sem esse título. Como foi a adaptação?
Tive grandes pessoas que me ajudaram, como o senhor Ilídio Pinto e a família. Era um rapaz de 22 anos que ficou de um momento para o outro a 1200 quilómetros de casa, num país com um idioma que não percebia. Ele e a família foram como segundos pais, fizeram tudo para que me sentisse integrado e, se não fossem eles, em vez de demorar um mês ou dois a sentir-me bem, teria demorado cinco ou seis. Estava sempre atento, a perguntar se precisava de algo, se me alimentava
E na pista?
Os guarda-redes espanhóis demoram sempre tempo a adaptar-se a Portugal, aos sistemas táticos e a uma forma de jogar mais aberta. A pré-temporada foi um choque, mas lembro-me que em dezembro houve Europeu, em Paços de Ferreira, e já estava no meu máximo. Outros guarda-redes demoram um ano ou nunca se adaptam e têm de ir embora. Foi graças ao clube, ao Porto, ao presidente, ao Franklim [ex-jogador, ex-treinador e atual team manager], aos colegas
Todos fizeram um esforço para isso.
Também se adaptou rapidamente à cidade.
Encanta-me, está cada vez mais bonita. Já não penso voltar a Barcelona: os meus filhos são portugueses, a minha mulher é portuguesa. Podia levá-los para Espanha, mas foi aqui que cresci e me fiz homem. E o carinho das pessoas
Nunca imaginei isto, alguém cruzar-se comigo e querer dizer obrigado. Compensa tudo. E quem tem de agradecer sou eu.
Ir para a Juventude de Viana foi uma decisão fácil?
Há quatro fatores. Primeiro, um amigo meu, o Renato [Garrido, atual adjunto de Cabestany no FC Porto], pediu-me para o ajudar, ele merece e acho que tem potencial para ser um grande treinador. Em segundo lugar, vou para uma equipa na qual já jogaram grandes colegas. Em terceiro, o FC Porto queria que fosse treinar nas camadas jovens, mas não queria interferir na carreira do meu filho [Alejandro Edo, guarda-redes dos Sub-15]. Vou ajudá-lo sempre, mas podia ser prejudicial estar no meio e ele tem de crescer sozinho, como eu. O quarto fator é que, nos últimos dois anos, primeiro por suspensão e este ano por opção do treinador, quase não joguei. Não me queria despedir assim do hóquei e, aliás, gostaria de estar sempre ligado à modalidade, que é a minha vida. Percebo que o FC Porto queira mudar, nunca pensei jogar até aos 40 e ainda menos num clube como este. Foi muito bom, não tenho qualquer mágoa. Estou muito agradecido.
Que momento elege como o melhor?
Aqueles dez anos consecutivos a ganhar o Campeonato foram maravilhosos. Uma pessoa que me marcou, a par do presidente e do Eurico [Pinto, vogal da direção e responsável pela modalidade], foi o Franklim. Identifico-me com ele dentro e fora da pista e ajudou-me muito a chegar ao nível a que cheguei. Toda a gente no balneário dizia que era o meu padrinho, que foi a pessoa que me viu jogar uma vez e recomendou a minha contratação, e eu encantado com isso. Adorei que se tivesse cruzado na minha vida, levo daqui muitos amigos e ele é um deles.
Como foi possível ganhar dez vezes seguidas?
Quem veste a camisola do FC Porto tem de ser um grande jogador e estou muito honrado pelo facto de o clube me ter permitido jogar com alguns dos melhores executantes que a modalidade teve. Aquela equipa tinha uma coisa especial: quando chegavam os momentos de aperto, unia-se e era muito difícil de bater. Era tudo maravilhoso e perfeito? Não, tínhamos os nossos problemas, mas quando chegava o momento sabíamos juntar-nos. Na equipa ideal da minha carreira punha o Pedro Gil, o Filipe Santos e o Reinaldo Ventura e deixava um lugar vazio, que podia ser de muitos companheiros. Estes três marcaram a minha carreira.
E qual foi o pior momento?
A final da Liga Europeia em casa, contra o Benfica. Estava tudo preparado e, fazendo agora uma análise, acho que cometemos erros, como ganhar o Campeonato 15 dias antes, facilmente. Achávamos que íamos ganhar, mais tarde ou mais cedo. Terem-nos comunicado à meia-noite que o Benfica não ia aparecer desestabilizou; a essa hora estávamos acordados a dizer que queríamos era ser campeões, não nos interessava se jogávamos ou não. A alteração dos árbitros, uma hora antes de começar o jogo, também foi prejudicial. Estivemos a ganhar 3-1, mas depois não conseguimos distanciar-nos e a pressão veio para nós. Foi muito mau, pior era impossível. Aquela equipa não merecia aquele final.
Nunca ter conquistado a Liga Europeia foi uma grande mágoa?
Não acredito que haja muitos jogadores na história do hóquei a estar seis ou sete vezes a 50 minutos de serem campeões europeus e não o tenham conseguido nenhuma vez. Se alguma vez regressar ao clube e ajudar a conseguir a taça, vou atirá-la ao chão e parti-la em mil pedaços. Chorei muitas vezes por ela.
Que balanço faz desta época, sendo que ainda há a Taça de Portugal como objetivo?
O balanço não pode ser positivo. O FC Porto tem de ganhar, ser segundo não serve de nada. Vamos fazer tudo para ganhar a Taça, mas não fico satisfeito. Os adeptos habituaram-se a que o hóquei lhes dê muitas alegrias, mas acho que as coisas vão voltar ao habitual e o FC Porto a ganhar.
Sentiu-se alguma falta de experiência da equipa?
Em 18 anos passei por várias revoluções e todas correram bem. Esta falhou em alguns momentos-chave, mas não acho que a temporada tenha corrido mal por causa dos jovens. Só queria deixar um aviso: chegar ao FC Porto não é uma meta, é um princípio. Para fazer história, há que vencer. Se se sabe viver com essa pressão extra, ela é muito boa. Eu consegui e ajudou-me em momentos complicados. Quando se veste esta camisola uma vez tem de se tentar vesti-la toda a vida, e para isso tem de se vencer. E se se começar a vencer não vai ser uma vez, vão ser 10 ou 15 vezes, 30, se for possível.
Com o Nélson Filipe, o outro guarda-redes, sempre houve mais amizade e entreajuda do que rivalidade, não é?
Fico muito contente de ver o Filipão no momento em que está e a ser candidato para a seleção, depois de uma temporada tão boa. Não o criei, mas é como se fosse um filho. Desde que chegou passaram dez anos e sei que participei na sua evolução. Esteve sempre ao meu lado nos melhores e nos piores momentos e devia-lhe, depois de o treinador ter tomado a sua opção, o meu apoio. Disse-lhe o que gostaria que me dissessem se estivesse na baliza: tento dar calma e avisar dos perigos. É outro dos amigos de verdade que levo do hóquei.
A suspensão que teve em 2014, que praticamente o afastou dos rinques durante seis meses, foi certamente outro dos piores momentos da carreira.
Paguei em demasia. Tentaram destruir-me para atingir o FC Porto e acho que conseguiram. Estar nove jogos de fora não foi fácil para mim, nem explicar isso aos meus filhos e família. O FC Porto tentou proteger-me e fez tudo o que podia, mas isso atingiu-me a mim e à equipa.
Aprendeu com a situação?
No caso do jogo na Luz não sei quem não reagiria, levei com um cuspidela porque fui o primeiro a sair, estava tão cansado que tirei o capacete e esse foi o grande erro. Preferia mil vezes que me tivessem acertado com um murro. À segunda, já não permitia o que quer que viesse daquele lado. O período depois do primeiro incidente foi tão mau que o pavio ficou muito curto. Aprendi, dificilmente vão ver-me noutra situação do género. Não gosto do vermelho e nunca vou gostar, perdoo mas não esqueço.
Foi várias vezes internacional espanhol, mas acabou por desistir da seleção muito cedo. Pode recordar o que aconteceu?
Depois do meu primeiro ano no FC Porto tinha o Campeonato do Mundo em Reus e, no decorrer da preparação, não me deixaram ir a uma celebração no Porto, como permitiram aos jogadores do Barcelona, e não achei normal. Naquela época Portugal era o grande rival a abater e ganhava muitos títulos. O presidente da federação ameaçou-me: se fosse à celebração, não ia ao Mundial. Respondi que então não ia ao Mundial. Acabaram por me permitir ir, mas não me deram nem um minuto no Mundial, quando seis meses antes era titular. A partir daí a seleção morreu, tinha 23 anos. Poderia ter sido campeão do mundo como o meu pai, mas gosto de jogar onde sou querido e sinto que precisam de mim. Senti isso no FC Porto, em Espanha não. Talvez nem tivesse ganho com a Espanha, porque não era eu. Aqui fui eu: o sentimento, a paixão e o carinho dos adeptos fizeram com que desse o meu máximo. Joguei com a mão partida, doente, mil vezes infiltrado para não ter dores. Voltaria a fazê-lo? Sim.
Já é mais português do que espanhol ou catalão?
Posso dizer que vivi metade da minha vida em Espanha e a outra em Portugal. O meu passaporte dirá sempre que sou espanhol, mas a minha cidade, onde me sinto bem e me fiz homem, é aqui. Acho que vou continuar a viver aqui muitos anos e a ser portista. Dizem que uma pessoa não muda de clube e eu sempre gostei do FC Barcelona, mas tenho claro que o FC Porto me deu muito e à minha família, o FC Barcelona não me deu nada. Na última final da Taça em futebol dei por mim a vibrar e a pensar que nunca senti isso a ver o FC Barcelona. Gosto de ver o Messi e o Iniesta, mas vibro com o FC Porto.
É nacionalista catalão?
Não. A política nunca me interessou, nunca votei. Gosto de dizer que sou espanhol da Catalunha.
É sempre difícil falar dos filhos, mas que futuro vê para o seu filho, o Alejandro?
Vejo que o meu filho gosta de jogar, diverte-se e tento dar conselhos, como qualquer pai. Não sei se vai chegar longe, mas onde quer que chegue o pai vai estar orgulhoso, porque sabe que ele deu sempre o máximo. Claro que gostava que representasse o FC Porto no escalão sénior e se ele receber metade do carinho que eu recebi já poderá ficar contente.
Encaminhou-o para a baliza?
Quando o tentei disse-me que não queria. Um ou dois anos mais tarde, tinha uma coisa para me dizer: queria ser guarda-redes. Desde esse dia, quando tinha seis ou sete anos, nunca mais saiu da baliza.
Para o final fica uma das perguntas mais difíceis: como vai ser jogar contra o FC Porto?
Vai ser muito difícil, vou ter de fazer um grande trabalho prévio. Não imagino o dia e a despedida já me está a custar imenso. Vai ser estranho ver os ex-colegas a rematar contra mim e a tentar marcar-me golo. Nunca vou esquecer a minha relação com o FC Porto, que vai deixar de ser como jogador mas vai continuar como adepto.
Espero um dia, se Deus quiser e o FC Porto quiser, voltar. No final da minha primeira fase como jogador, queria deixar acima de tudo um enorme obrigado.
Esta entrevista a Edo Bosch, da autoria de João Barros, foi publicada na edição de junho de 2016 da revista Dragões