Bergoglio foi uma figura ímpar entre os seus pares e uma das maiores vozes do nossos tempos. Chegou ao centro do poder eclesiástico vindo das margens, abriu a Igreja, aproximou-a do que é terreno, humanizou-a e levou-a de regresso à periferia. Apontou o dedo aos vícios do Vaticano, combateu o clericalismo, rejeitou simbolicamente adereços de luxo e de distinção. Foi peregrino em todos os continentes e esteve onde nenhum outro Papa havia estado: Mongólia, Sudão do Sul, Emirados Árabes Unidos, Timor Leste, Myanmar... Deslocou-se a países em guerra, esteve presente entre comunidades católicas minoritárias, encontrou-se com líderes judaicos e muçulmanos, apelou ao ecumenismo e ao diálogo inter-religioso.
Procurou enfrentar os piores escândalos e as manchas mais tenebrosas da Igreja. Pediu perdão às vítimas de abuso sexual, dando a cara e reunindo-se presencialmente com algumas. Trouxe a Igreja para o século XXI e abriu as suas portas aos divorciados, valorizou o papel da mulher nas estruturas religiosas e resgatou os homossexuais da irremediável condenação canónica. Não terá ido tão longe como muitos desejavam e algumas das suas posições terão desiludido. Apesar disso, movendo-se entre tensões e movimentos de oposição interna, indicou a uma organização profundamente conservadora rumos de progresso e de renovação.
Foi incómodo até ao fim. Atacou a ganância, as disfunções e perversidades do sistema económico. Repreendeu o mundo da finança. Face ao ódio e ao medo crescentes, defendeu o acolhimento de imigrantes e procurou restituir-lhes a sua humanidade. Lampedusa foi o seu primeiro destino de viagem, tendo deixado uma coroa de flores no Mediterrâneo. Deslocou-se regularmente a prisões, onde lavou e beijou os pés de muitos reclusos. Não teve medo de usar palavras severas quando achou necessário: afirmou que o que se passa em Gaza não é uma guerra mais sim terrorismo. A sua mensagem de amor e de perdão devia fazer corar de vergonha muitos dos que se arrogam defensores dos valores cristãos. Hoje morreu e é bom. Amanhã, parte dos que o evocam e elogiam tornarão a voltar as costas ao seu exemplo.
Não me aproximou da fé, mas deu-me alguma esperança nos seres humanos. Se houver um Deus, que o acolha com alegria.