O trauma inevitável do FC Porto
O FC Porto deixou de ser parte dos organismos vivos e sujeitos às regras da evolução. Chegou a um estado de decomposição tal que só por milagre escapará ao conflito, à descrença e à suspeita.
Manuel Carvalho, Jornal Público
26 de Abril de 2024,
Se Jorge Nuno Pinto da Costa ganhar as eleições deste sábado, o FC Porto estará condenado a continuar o trauma da degenerescência que lhe minou a bravura e esvaziou a
competência nos últimos dez anos ou mais. Se Jorge Nuno Pinto da Costa perder as eleições, a massa associativa portista viverá anos amargurada pelo complexo da culpa e da ingratidão, à luz das quais tenderá a interpretar tudo o que o seu sucessor faça ou deixe de fazer. O clube deixou de ser parte dos organismos vivos e sujeitos às regras da evolução. Chegou a um estado de decomposição tal que só por milagre escapará ao conflito, à descrença e à suspeita.
Sempre que um reinado longo e vagamente despótico chega ao fim, há lugar para a insegurança e a orfandade. Apesar de todos os títulos, ainda que seja incontestável que Pinto da Costa transformou um clube de província numa potência dominadora em Portugal e com uma improvável dimensão europeia, o grande timoneiro ocupou o lugar tempo de mais. Cometeu o pecado de achar que ele e o clube eram uma entidade una e indivisível. Acreditou que após mais de 40 anos de desgaste tem a mesma agilidade, a mesma energia, a mesma flexibilidade para fazer os milagres que fez em 1987 ou em 2003.
O resultado está à vista. As competências que permitiram ao FC Porto dominar o futebol português durante décadas esmoreceram, ou dissiparam-se, e migraram para os clubes da capital. Áreas cruciais como a gestão, o
marketing, a formação, o
scouting foram descuradas. Como os nobres arruinados, as manifestações exteriores de riqueza do plantel obtiveram-se pela venda adiantada das pratas, sejam os
direitos comerciais ou os televisivos. E ainda assim, o clube está no limiar do incumprimento das regras de fair play financeiro da UEFA e numa crise que o aproxima do precipício da bancarrota.
Não tinha de ser assim. Pinto da Costa deveria ter assumido há anos que a sua paixão pelo clube lhe exigia a qualidade máxima das paixões: desprendimento. Devia por exemplo ter ajustado os estatutos para poder ser um
chairman e deixar a gestão corrente a um CEO. Em vez de gravitar em torno de uma administração dividida, entretida em guerras palacianas de facções que lhe reforçavam o poder por ser o único que as conseguia adestrar e equilibrar, deveria ter tido a glória de dar a outrem o encargo de recomeçar a partir da sua herança ainda sólida.
Ao decidir manter-se na presidência até
para lá da sensatez, Pinto da Costa afrontou a inteligência e a dedicação dos sócios que já nas últimas eleições lhe mostraram um cartão amarelo. Ao assenhorear-se do clube, como um conde feudal, e ao usá-lo como reserva para as suas preferências, amizades e interesses, Pinto da Costa forçou a emergência de um opositor de gabarito para pôr termo ao regime e à decrepitude. É irónico que as eleições aconteçam ainda sob a égide dos 50 anos do 25 de Abril.
Nada está ganho, mas Pinto da Costa já perdeu: deixará de ser o presidente que todos os portistas, incluindo o autor destas linhas, veneravam pelo cabaz de vitórias nacionais e internacionais com que os fez felizes. A sua vida e obra estão carregadas de polémicas, abusou por vezes, esteve no limiar da decência ou da lei outras tantas, sem dúvida. Mas foi igualmente um visionário, um líder genial que construiu uma obra impressionante
Ganhe quem ganhar, o FC Porto perde porque deixará de ter a referência que o fez diferente décadas após décadas. Uma vitória de André Villas Boas restaurará a credibilidade da gestão e a sensação de que o clube deixou de ser uma coutada de uns poucos. Mas deixará também um vazio para o trauma da injustiça. Pinto da Costa merecia sair em glória do clube. Mas se não saiu é por culpa da arrogância e da cegueira que normalmente tolda a visão dos que confundem egos com cargos, poder com discricionariedade, horizonte com ausência de limites. Acontece nos países, acontece nos clubes de futebol.