Viitorul, como Hagi cria futuro na Roménia
Maradona dos Cárpatos fundou clube e academia e até já defrontou o FC Porto na Youth League
Luís Pedro Ferreira
Jornalista
Viitorul, como Hagi cria futuro na Roménia
Gheorge Hagi sempre foi conhecido por fazer as coisas como queria. Dentro de campo e fora dele. Esse traço de teimosia está a mudar o futebol romeno.
Farto do que vivia no futebol do país, Hagi resolveu agarrar o futuro pelas próprias mãos.
O antigo médio de Real Madrid, Barcelona e Galatasaray nunca escondeu o amor pelo Steaua Bucareste, com o qual luta ombro a ombro pelo título.
A liderança do Viitorul na liga romena é apenas uma das consequências dos ensinamentos de Johan Cruijff. As outras, menos visíveis, são também mais demoradas. Mas Hagi tem o que a maioria do futebol romeno não tem: um projeto.
«O Viitorul tem a particularidade de ser totalmente diferente na Roménia, é um clube muito bem organizado, com um planeamento muito grande, compromisso com os atletas, não só com seniores, mas com os miúdos da formação sobretudo.»
Peterson Peçanha, guarda-redes do Feirense, trabalhou naquele clube romeno durante meia época. Conhece por dentro a Academia Hagi, as instalações, as ideias e o caráter do dono daquilo tudo: Gheorge, claro.
É o antigo guarda-redes de Marítimo e Paços de Ferreira que nos explica que um encontro entre os juniores do FC Porto e do Viitorul Constanta na Champions dos mais novos, a Youth league, não foi fruto de um acaso. É, lá está, uma consequência do investimento financeiro e ideológico de um homem determinado.
«É impossível ter uma conversa com ele que não seja sobre futebol. Pode estar a falar-se de outro assunto, mas passados dois minutos ele fala de futebol. Do balneário ao campo de treino são uns 200 metros e com isso passamos pelo local onde ficam os outros relvados. Quando juvenis e juniores estão a treinar e ele observa que algo não está como quer, nem sobe ao campo dos seniores. Fica lá no outro, pára o treino, chama o treinador e dá indicações. Todos têm respeito por ele e não é só pelo jogador que foi.»
Em 2009, a maior glória da Roménia decidiu fundar a Academia Hagi. Uma fábrica de talentos, como La Masia do Barcelona. O objetivo é desenvolver o futebol de uma nação que teve o seu momento alto no Mundial 1994, com ele próprio a liderar em campo a geração de ouro do país.
Ao mesmo tempo que fundou a academia em Ovidiu, estabeleceu o Viitorul. A escolha do nome não foi casual. «Futuro» em romeno. Teve de começar no terceiro escalão, estreou-se na Liga em 2012/13 e lidera-a em 2016/17.
Peçanha dá-nos o olhar interno que levou ao primeiro lugar do campeonato.
«O Hagi é o mentor de tudo. Veio com visão daquilo que é o Barcelona e trouxe com ele essa metodologia do Cruijff para a Roménia. Tem tido muito sucesso. Os jogadores da Academia integram as seleções em todas as camadas. Tem surtido efeito. Há pouco tempo, foi mesmo a única equipa a entrar com todos os jogadores formados em casa. Subiram à I Liga e neste espaço de tempo estão a lutar pelo título. Tudo isto com 80 por cento do grupo formado na Academia Hagi.»
Jogo na Academia Hagi
O guardião brasileiro conta-nos que «os miúdos de outras cidades vão para a academia, vivem lá, e inclusive, têm acompanhamento escolar». O que é comum no futebol de vários países é raridade na Roménia. «Tentam dar a formação mais profissional possível e têm tudo para no futuro serem uma das melhores da Europa», acrescenta.
Um pouco do tudo a que se refere Peçanha é listado mais tarde na conversa com o Maisfutebol: «É um centro de estágio muito bom. Dois campos grandes de futebol de onze, mais dois pequenos, de futebol de sete, de relva natural. Um sintético de sete e um sintético de onze. Estão ainda a terminar um hotel para fazer dentro do centro de estágio. O estádio tem cinco mil pessoas. Foi ele, o Hagi, que também o fez.»
O Maradona dos Cárpatos nunca foi um tipo qualquer, isso já se sabia. Continua igual. «Quando ele vai à TV, diz que é diferente de todos. Lembra que ninguém o ajudou, fez tudo com o dinheiro dele. É um homem diferente!»
Plano geral da Academia Hagi
Como diferente é o Viitorul, sublinhado pelas palavras de Peçanha, quando confrontado com a realidade do clube mais famoso do país.
«O Steaua Bucareste, além de ter apoio financeiro do dono [Gigi Becali], é ajudado por tudo e todos. Mas não quero entrar muito por esses lados, não me cabe falar sobre isso.» Peçanha refere, porém, que o Viitorul Constanta aproveitou um vazio criado no campeonato para se afirmar em definitivo na Liga.
«Os arquirrivais do Steaua, o Rapid e o Dínamo, eram em conjunto com o Petrolul as principais equipas da Roménia. Rapid e Petrolul entraram em falência e restou o Dínamo, que veio de um processo de reorganização. Conseguiram sair dessa restruturação, mas a nível financeiro é muito inferior ao Steaua. Com isso, surgiu o Viitorul com uma metodologia diferente. O Steaua vê os melhores e compra, o Viitorul forma.»
Estes dois emblemas estiveram em campo no último domingo. O Viitorul venceu por 3-1 e lidera o play-off de campeão com mais três pontos que o clube de Bucareste. Oito dos futebolistas que disputaram a partida passaram na Academia Hagi: seis no Viitorul e dois no Steaua. Para já, vender ativos também faz parte do processo: uma ideia não se financia por si só.
Aliás, essa é outra parte que, garante Peçanha, contrasta com a realidade futebolística do país, ele que passou por Rapid e Petrolul também. «Na Roménia, é muito complicado conseguir pessoas que tenham compromisso profissional. Mas salários, prémios de jogo, tudo o que é combinado é cumprido no Viitorul. Trabalhei lá uns meses e nunca tive nada atrasado. Isso dá confiança. Fui muito bem recebido no Viitorul. Ali há profissionalismo ao extremo, desde o Hagi ao presidente. Dificilmente o clube muda uma peça do staff. Resumindo, trataram-me como deve ser tratado um jogador de futebol. É um clube diferente dos outros.»
Paulo Sousa segura a pérola mais preciosa de Hagi
Na última convocatória do selecionador romeno há dois jogadores formados na Academia de Hagi: Romario Benzar, que joga no Viitorul, e Razvan Marin, do Standard Liége.
O internacional mais jovem de sempre da Roménia é Cristian Manea. Com 16 anos, nove meses e 22 dias atuou pela seleção sénior e bateu um recorde que vinha de 1928. É um produto, também ele, da academia, que apesar do pouco tempo de existência tem estado na discussão dos títulos de sub-19 e sub-17 do país.
A última chamada dos sub-21 romenos contempla 25 jogadores. Onze deles formados na academia de Gheorge Hagi. Nestes, incluiu-se o mais mediático de todos, que atua na Fiorentina de Paulo Sousa: Ianis Hagi. Sim, é filho.
Gheorge é fundador, deixou de ser presidente, mas quando se tornou treinador lançou o miúdo e até fez dele capitão de equipa. Ianis tinha 16 anos
Peterson Peçanha contrasta com todo este mundo. Num clube apostado em lançar o futuro, pode causar estranheza a contratação de um guarda-redes com 36 anos. O Viitorul estava a pensar nos mais novos outra vez.
«A minha contratação foi numa fase em que eles se tinham classificado para o play-off de campeão, no inverno. Fui contratado eu e mais três jogadores fora daquilo que é o pensamento do Hagi. Ele pensou contratar um médio, dois centrais e um guarda-redes com experiência para dar suporte aos miúdos, para lhes transmitir experiências numa fase em que os jogos seriam mais complicados.»
Como o estão a ser agora. A vitória do fim de semana deixou o Viitorul na frente da corrida do título. Faltam oito jogos, porém, e a tarefa está longe de ser fácil.
«O Viitorul tem tudo para ser campeão, mas é complicado. Na Roménia não é fácil», ri Peçanha, que sublinha que «o Steaua tem muita força».
A teimosia de Hagi também.
Maradona dos Cárpatos fundou clube e academia e até já defrontou o FC Porto na Youth League
Luís Pedro Ferreira
Jornalista
Viitorul, como Hagi cria futuro na Roménia
Gheorge Hagi sempre foi conhecido por fazer as coisas como queria. Dentro de campo e fora dele. Esse traço de teimosia está a mudar o futebol romeno.
Farto do que vivia no futebol do país, Hagi resolveu agarrar o futuro pelas próprias mãos.
O antigo médio de Real Madrid, Barcelona e Galatasaray nunca escondeu o amor pelo Steaua Bucareste, com o qual luta ombro a ombro pelo título.
A liderança do Viitorul na liga romena é apenas uma das consequências dos ensinamentos de Johan Cruijff. As outras, menos visíveis, são também mais demoradas. Mas Hagi tem o que a maioria do futebol romeno não tem: um projeto.
«O Viitorul tem a particularidade de ser totalmente diferente na Roménia, é um clube muito bem organizado, com um planeamento muito grande, compromisso com os atletas, não só com seniores, mas com os miúdos da formação sobretudo.»
Peterson Peçanha, guarda-redes do Feirense, trabalhou naquele clube romeno durante meia época. Conhece por dentro a Academia Hagi, as instalações, as ideias e o caráter do dono daquilo tudo: Gheorge, claro.
É o antigo guarda-redes de Marítimo e Paços de Ferreira que nos explica que um encontro entre os juniores do FC Porto e do Viitorul Constanta na Champions dos mais novos, a Youth league, não foi fruto de um acaso. É, lá está, uma consequência do investimento financeiro e ideológico de um homem determinado.
«É impossível ter uma conversa com ele que não seja sobre futebol. Pode estar a falar-se de outro assunto, mas passados dois minutos ele fala de futebol. Do balneário ao campo de treino são uns 200 metros e com isso passamos pelo local onde ficam os outros relvados. Quando juvenis e juniores estão a treinar e ele observa que algo não está como quer, nem sobe ao campo dos seniores. Fica lá no outro, pára o treino, chama o treinador e dá indicações. Todos têm respeito por ele e não é só pelo jogador que foi.»
Em 2009, a maior glória da Roménia decidiu fundar a Academia Hagi. Uma fábrica de talentos, como La Masia do Barcelona. O objetivo é desenvolver o futebol de uma nação que teve o seu momento alto no Mundial 1994, com ele próprio a liderar em campo a geração de ouro do país.
Ao mesmo tempo que fundou a academia em Ovidiu, estabeleceu o Viitorul. A escolha do nome não foi casual. «Futuro» em romeno. Teve de começar no terceiro escalão, estreou-se na Liga em 2012/13 e lidera-a em 2016/17.
Peçanha dá-nos o olhar interno que levou ao primeiro lugar do campeonato.
«O Hagi é o mentor de tudo. Veio com visão daquilo que é o Barcelona e trouxe com ele essa metodologia do Cruijff para a Roménia. Tem tido muito sucesso. Os jogadores da Academia integram as seleções em todas as camadas. Tem surtido efeito. Há pouco tempo, foi mesmo a única equipa a entrar com todos os jogadores formados em casa. Subiram à I Liga e neste espaço de tempo estão a lutar pelo título. Tudo isto com 80 por cento do grupo formado na Academia Hagi.»
Jogo na Academia Hagi
O guardião brasileiro conta-nos que «os miúdos de outras cidades vão para a academia, vivem lá, e inclusive, têm acompanhamento escolar». O que é comum no futebol de vários países é raridade na Roménia. «Tentam dar a formação mais profissional possível e têm tudo para no futuro serem uma das melhores da Europa», acrescenta.
Um pouco do tudo a que se refere Peçanha é listado mais tarde na conversa com o Maisfutebol: «É um centro de estágio muito bom. Dois campos grandes de futebol de onze, mais dois pequenos, de futebol de sete, de relva natural. Um sintético de sete e um sintético de onze. Estão ainda a terminar um hotel para fazer dentro do centro de estágio. O estádio tem cinco mil pessoas. Foi ele, o Hagi, que também o fez.»
O Maradona dos Cárpatos nunca foi um tipo qualquer, isso já se sabia. Continua igual. «Quando ele vai à TV, diz que é diferente de todos. Lembra que ninguém o ajudou, fez tudo com o dinheiro dele. É um homem diferente!»
Plano geral da Academia Hagi
Como diferente é o Viitorul, sublinhado pelas palavras de Peçanha, quando confrontado com a realidade do clube mais famoso do país.
«O Steaua Bucareste, além de ter apoio financeiro do dono [Gigi Becali], é ajudado por tudo e todos. Mas não quero entrar muito por esses lados, não me cabe falar sobre isso.» Peçanha refere, porém, que o Viitorul Constanta aproveitou um vazio criado no campeonato para se afirmar em definitivo na Liga.
«Os arquirrivais do Steaua, o Rapid e o Dínamo, eram em conjunto com o Petrolul as principais equipas da Roménia. Rapid e Petrolul entraram em falência e restou o Dínamo, que veio de um processo de reorganização. Conseguiram sair dessa restruturação, mas a nível financeiro é muito inferior ao Steaua. Com isso, surgiu o Viitorul com uma metodologia diferente. O Steaua vê os melhores e compra, o Viitorul forma.»
Estes dois emblemas estiveram em campo no último domingo. O Viitorul venceu por 3-1 e lidera o play-off de campeão com mais três pontos que o clube de Bucareste. Oito dos futebolistas que disputaram a partida passaram na Academia Hagi: seis no Viitorul e dois no Steaua. Para já, vender ativos também faz parte do processo: uma ideia não se financia por si só.
Aliás, essa é outra parte que, garante Peçanha, contrasta com a realidade futebolística do país, ele que passou por Rapid e Petrolul também. «Na Roménia, é muito complicado conseguir pessoas que tenham compromisso profissional. Mas salários, prémios de jogo, tudo o que é combinado é cumprido no Viitorul. Trabalhei lá uns meses e nunca tive nada atrasado. Isso dá confiança. Fui muito bem recebido no Viitorul. Ali há profissionalismo ao extremo, desde o Hagi ao presidente. Dificilmente o clube muda uma peça do staff. Resumindo, trataram-me como deve ser tratado um jogador de futebol. É um clube diferente dos outros.»
Paulo Sousa segura a pérola mais preciosa de Hagi
Na última convocatória do selecionador romeno há dois jogadores formados na Academia de Hagi: Romario Benzar, que joga no Viitorul, e Razvan Marin, do Standard Liége.
O internacional mais jovem de sempre da Roménia é Cristian Manea. Com 16 anos, nove meses e 22 dias atuou pela seleção sénior e bateu um recorde que vinha de 1928. É um produto, também ele, da academia, que apesar do pouco tempo de existência tem estado na discussão dos títulos de sub-19 e sub-17 do país.
A última chamada dos sub-21 romenos contempla 25 jogadores. Onze deles formados na academia de Gheorge Hagi. Nestes, incluiu-se o mais mediático de todos, que atua na Fiorentina de Paulo Sousa: Ianis Hagi. Sim, é filho.
Gheorge é fundador, deixou de ser presidente, mas quando se tornou treinador lançou o miúdo e até fez dele capitão de equipa. Ianis tinha 16 anos
Peterson Peçanha contrasta com todo este mundo. Num clube apostado em lançar o futuro, pode causar estranheza a contratação de um guarda-redes com 36 anos. O Viitorul estava a pensar nos mais novos outra vez.
«A minha contratação foi numa fase em que eles se tinham classificado para o play-off de campeão, no inverno. Fui contratado eu e mais três jogadores fora daquilo que é o pensamento do Hagi. Ele pensou contratar um médio, dois centrais e um guarda-redes com experiência para dar suporte aos miúdos, para lhes transmitir experiências numa fase em que os jogos seriam mais complicados.»
Como o estão a ser agora. A vitória do fim de semana deixou o Viitorul na frente da corrida do título. Faltam oito jogos, porém, e a tarefa está longe de ser fácil.
«O Viitorul tem tudo para ser campeão, mas é complicado. Na Roménia não é fácil», ri Peçanha, que sublinha que «o Steaua tem muita força».
A teimosia de Hagi também.