Provocaçãozinha: tens a certeza de que essa equipa não conseguia também pegar nas canções do Quim Barreiros ou, a outro nível, do Variações, e transformá-los em ícones globais?
Ao contrário de ti, eu não acho que o talento individual dos músicos seja o mais determinante quando se trata de criar um fenómeno de vendas na música. Se o talento fosse o principal, a Kate Bush, por exemplo, teria uma carreira dez vezes maior do que a da Madonna.
Na realidade, muitas das bandas mais famosas dos anos 60, e que se tornaram ícones da pop, eram formadas por gajos que, pelo menos no início da carreira, não sabiam tocar uma nota. Falo de bandas como Doors, Animals, Byrds, The Mamas and the Papas, Monkeys, etc. Tanto que era preciso contratar músicos a sério para tocar por eles no estúdio, como os famosos Wrecking Crew. Os próprios Beach Boys recorriam aos serviços desses músicos de estúdio. O principal mérito destas bandas era terem boa figura e o backup dum Phil Spector capaz de lhes dar um som espectacular. Um pouco como as lady gagas e as taylor swifts actuais.
Em resumo, a minha antipatia de base por esse tipo de música super-produzida tem que ver o facto de serem sobretudo produtos artificiais bem trabalhados, bem enlatados e bem promovidos. E com isto não estou a negar que os produtores são essenciais. Pelo contrário, acho que um grande produtor consegue pegar numa musiquinha chocha, mexer aqui e ali e transformá-la numa canção imortal.
Absoluta. Primeiro, nem o Quim nem o Variações (que tinha uma voz grandiosa) tinham a voz e a capacidade para dançar do Jackson. Estamos a falar de um miúdo que, para além de possuir um talento inato, foi torturado para chegar aonde chegou. Até é bom dares o exemplo do Variações, porque quem estava no estúdio com ele eram algumas das melhores bandas portuguesas dos anos 80.
Falas nos Beach Boys. O Brian Wilson era o homem por detrás das músicas e da produção. O Pet Sounds é uma obra-prima. Sim, recorria aos músicos de estúdio, aos primos e aos irmãos - mas a ideia, a visão, era toda dele. Toda. Os Beatles não teriam chegado aonde chegado sem existir um Brian Wilson.
Ouve as demos feitas em casa de Beat It, Billie Jean, Smooth Criminal, etc., e verás, independentemente de achares que são músicas de jeito ou não, que a base, a visão, a estrutura das músicas já estava pré-definida pelo Jackson. Incomparável com a Madonna, cujo grande mérito é ser uma businesswoman espetacular, com uma visão de negócio ímpar, não propriamente um enorme talento.
Cada integrante da equipa do Quincy, sem prejuízo daquelas canções que foram escritas / feitas por algum deles (Thriller, Rock With You, por exemplo), pegava na visão do Jackson e fazia, dentro do seu nicho, que a canção soasse o melhor possível. Atenção: sempre sob a direção do Jackson e do Quincy. Não sabendo tocar qualquer instrumento, conseguia, através da sua voz e de barulhos com a boca (beatbox, p.e.), transmitir aos instrumentalistas o que deveriam tocar. Esse testemunho foi dado por vários dos que trabalharam com ele. O engenheiro de som do Quincy e do Jackson, o Bruce Swedien, tem um excelente livro a esse respeito, chamado "In the Studio with Michael Jackson".
Quanto ao exemplo que tinhas dado sobre o Prince, esse é mesmo o último degrau, porque o Prince era um control freak, tocava todos os instrumentos, fazia todos os arranjos, compunha e produzia todas as canções. Estava a cagar-se para o facto de ser comercial ou não - foi precisamente essa irreverência que o levou a ter problemas com a Warner nos anos 90, e a deixar de usar o nome Prince, passando a manifestar-se como um símbolo.