Futebol

Entrevista de Pedro Emanuel ao Porto Canal

O atual treinador do Estoril falou ao Porto Canal sobre o início de carreira, a importância da família a sobre o seu assobio, uma das imagens de marca enquanto jogador.

Olhar sobre o dia 12 de dezembro de 2004 (grande penalidade na Taça Intercontinental): “Esse momento foi importante para mim, mas mais pelo que representou. Pelo que jogo que foi e pelo que tínhamos conquistado ao longo, alguma supremacia, mas não refletida em golos, e depois chegarmos aquele momento onde após tantas grandes penalidades chegou a minha vez naquele momento de decidir. Acabei por ser eu a imagem daquela final e foi um pouco do que eu disse no final do jogo: não tive medo de ser feliz ou procurei que refletisse a nossa felicidade coletiva. E acho que foi perfeita essa conquista após dois anos gloriosos, para mim, mas principalmente para o clube e para o grupo de trabalho que muito conquistou”.

Noção da importância do momento: “Acho que foi um momento de grande concentração e teve a ver com aquilo que tínhamos analisado em relação ao Once Caldas. Tinham passado várias eliminatórias através de grandes penalidades, o Henao, o guarda-redes deles, era especialista nessa arte de defender penáltis. Foi, portanto, um momento de concentração da minha parte e acima de tudo de foco do que era importante naquele momento que era dar-nos a vitória pela qual tanto trabalhamos e que acreditei que finalmente iríamos conquistar”.

Futebol como grande paixão: “O futebol sempre foi a minha paixão. Inicialmente, nem era para ser o futebol, mas sim a natação. A minha mãe elegeu como sendo a natação, mas entretanto os meus pais deram conta que não era nada disso que eu pretendia. O meu pai tem um amigo que era, na altura, o tesoureiro na altura no Boavista, o sr. José Fernandes, e disse que ia haver captações no Boavista e acabei por ficar. Mas antes, sem os meus pais praticamente saberem, tinha ido, com a minha irmã mais velha, às captações no FC Porto. Só que eram tantos e tantos miúdos que eu passei à segunda fase e a minha irmã não teve hipótese de lá me levar e acabei por desistir. Quando foram as captações do Boavista fiquei logo e acabei por começar a minha formação no Boavista e ter anos bastante felizes e crescer enquanto jogador e homem e grande parte do que sou hoje deve-se a muito do que aprendi no Boavista e do crescimento na formação até ao ponto de ter sido campeão nacional”.

Captações no Boavista: “Agradeço à minha irmã ter-me dado a oportunidade de ir às captações – não fiquei porque ela não teve hipótese de ir no dia seguinte aos primeiros treinos onde estavam uns 250 miúdos -, mas também o apoio. Aliás, as minhas duas irmãs são extraordinárias, deram-me sempre muito apoio porque sempre sentiram que a paixão tinha pelo futebol era enorme”.

A mãe ficou chateada por ter optado pelo futebol? “Não ficou porque desde o início que tínhamos um acordo. O meu pai ficou todo contente, porque é o desporto que o meu pai elege como favorito, mas a minha mãe, pelas histórias que ia ouvindo sobre o que era a vida de futebolista, procurou sempre que eu não descurasse a minha educação e formação e fiz um acordo com ela: se não reprovasse em nenhum dos anos ela dar-me-ia a oportunidade de estar sempre no futebol até quando eu quisesse. Consegui cumprir esse compromisso até chegar à fase em que tive de decidir em ser profissional de futebol e abandonar a parte académica. Acabei por entrar no ISCAP, ainda estive dois ou três anos a fazer o primeiro ano, mas depois, quando chegaram as exigências a nível profissional, acabei por abandonar”.

Contrato profissional: “Quando assinei o primeiro contrato profissional tinha 17 anos e tinha que ter a anuência dos meus pais, e na altura fui ganhar um ordenado igual ao da minha mãe que, como funcionária pública, tinha ao fim de 20 anos de carreira. Isso leva a que as pessoas olhassem de lado para o que era um futebolista. Foi uma conversa que tive com uma pessoa responsável pelo Conselho Diretivo da Universidade que me disse que eu já tinha uma profissão e estava a tirar uma vaga a quem não tinha profissão. Foi um pouco isso que me levou a desistir de prosseguir o curso”.

Limitações: “É importante termos a noção das nossas limitações e daquilo que terão de ser as nossas exigências para podermos evoluir. O importante foi a minha passagem pelos clubes da II Divisão. É um jogo mais físico que me obrigou a ser muito mais inteligente. E depois também foi importante quem fui encontrando ao longo da passagem por esses clubes até chegar ao Boavista onde encontrei Isaías, Tavares, Rui Bento, pouco maios velhos do que eu, o próprio Litos, com quem tinha jogado na formação”.

Jaime Pacheco e o Boavista: “Acho que é muito importante a identidade de um treinador em função daquilo que é a cultura do clube. o Boavista e o Jaime Pacheco encaixavam perfeitamente. Isso deu continuidade e crescimento ao Boavista. As chegadas à Liga dos Campeões, à Taça UEFA… O Jaime Pacheco soube conjugar a mentalidade do clube com a oportunidade de ser campeão. Eu estava presente nessa altura, com um grupo de trabalho extraordinário, com qualidade e um grande espírito de equipa e solidariedade. Tentámos ser melhores a cada dia e isso levou a que o clube crescesse ao ponto de ser campeão nacional”.

Comandante: “Quando estamos num estádio, se queremos falar para o colega do lado, dificilemente nos vai ouvir. Quando se ouvia o meu assobio já se sabia que queria dizer alguma coisa. Tive vários colegas que se distraíam bastante. Não queria dizer nomes, mas se o Ricardo Carvalho se assumiu distraído… Era um extraordinário jogador com o qual aprendi imenso. Não deixa de ter algo que ele próprio também assumiu e melhorou. Isto para dizer que a forma de estar em campo com o assobio tinha a ver com a minha identidade”.

Perder a titularidade para Rolando: “No momento, nunca queremos aceitar, não queremos acreditar. Mas eu tinha a noção e estava também com alguns problemas físicos. Depois disso, nunca mais fui o mesmo, nunca me senti igual ao que era anteriormente. É lógico que nós, jogadores, mesmo com 40 anos, pensamos que podemos jogar e que temos capacidade. Nos primeiros jogos, custou-me um pouco.

Titularidade perdida antes do jogo com o Benfica: “Foi num jogo importante, por decisão do treinador, e eu tive de respeitar. Tentei transmitir a quem ia jogar a serenidade que é normal, num momento em que ele estava algo ansioso, como é natural. A qualidade dele fez o resto. Senti que seria o momento de passagem de testemunho, que era o momento da minha saída de cena”.

80 minutos com o lábio ferido no Estádio da Luz: “Lembro-me perfeitamente. Por exemplo, quando tinha algum problema durante um jogo que não me obrigasse a sair, era nesses momentos, da dor e da superação, que eu me motivava. Ia buscar essas energias. 'Não vais desistir agora e principalmente aqui, não. Este é um momento em que tens de dar mais qualquer coisa de ti'. Eram esses momentos que me entusiasmavam. Esse é um de vários que tenho para contar”

Outro exemplo, frente ao Inter, após fratura do nariz: “Perguntaram-me se estava apto para jogar para a Liga dos Campeões, frente ao Inter, e até pensava que era brincadeira. O médico dizia que não estava apto, mas decidi jogar. No primeiro remate que o avançado do Inter faz, acerta-me no nariz e o sangue começa a correr. O médico veio e disse que tinha sido mesmo no sítio. Apesar de tudo, eu disse para por qualquer coisa que aguentava. E assim foi, mesmo sem conseguir respirar. Eram estas coisas que também me entusiasmavam. Não era ser masoquista, era a minha forma de mostrar a mim próprio que sou capaz de ultrapassar os meus próprios limites”.

Lesão na tendão de Aquiles: “Tinha 32 anos e ouvi o médico dizer que o protocolo apontava para seis a oito meses de paragem. Pensei que iria regressar com 33 anos. Era uma lesão difícil de recuperar e achei que iria originar o meu final da carreira. Mas, no dia em que sou operado, está o presidente ao meu lado e, mal acordo, diz que vai correr tudo bem e tinha um novo contrato para eu assinar, e estava à espera que eu regressasse bem. Foi o alento que qualquer pessoa espera numa situação trágica como aquela. Fez-me acreditar. Demorou um pouco mais, fui operado uma segunda vez para correção. A minha força de voltar não era só por mim, mas também pelo clube e por todo o carinho que queria retribuir”.

Tantos títulos ao fim de dois anos: “Quando tomei a decisão de ir para o FC Porto, sabia que ia ser difícil. Jorge Andrade ainda não tinha sido vendido ao Corunha, os centrais eram somente o Jorge, o Ricardo Carvalho, Ricardo Costa e Andrade, e estavam presentes com frequência nas seleções, foi decisão de grande risco, faz parte do meu registo, existe uma dificuldade, então vamos olhar para ela. Sabia que o clube estava a passar momento difícil, propus-me a ajudar. Podia não ter tido o sucesso que tive, mas ao fim de dois anos senti-me completamente realizado na minha escolha”.

Época pós-Champions (2004/05): “Sentia-me perfeitamente em casa. Tive duas ou três abordagens, mas matei-as logo à raiz com as pessoas que me abordaram, disse:lhe: 'sinto-me realizado, o clube respeita-me e eu respeito o meu trabalho diário'”.

Época 2005/06: “Co Adriaanse chamou-me a mim e ao Diego, e disse que as posições que nós fazíamos iam deixar de existir na nova estrutura. Eu disse-lhe que estava para ajudar a equipa, que ia lutar por aquilo que fosse a melhor oportunidade. Acabei por jogar na esquerda ou na direita. No meio jogava o Pepe ou o Bruno Alves. Se fosse noutro momento acho que nunca iria fazer isso, mas ia dizer o quê? Que não me pusesse a jogar? Disse-lhe: 'Jogo onde achar que vou ser útil'. Acabámos por ter esta relação de muitos momentos muita aproximação outras mais afastamento”.

Época 2002/2003: “O Jorge Costa e o Ricardo Carvalho jogavam porque faziam uma dupla quase imbatível, Eu, enquanto jogador, queria era jogar, como é lógico. Mas sabíamos que eles eram efetivamente dois grandíssimos jogadores, o treinador tinha noção de que tanto eu como Ricardo Costa tínhamos legitimidade de pensar em poder jogar. Sabia que estávamos ali para o que for necessário”.

Pedro Emanuel e Ricardo Costa fundamentais para conquista da Taça UEFA: “Houve mérito e competência dos jogadores estarem preparados. Jankauskas lesionou-se, entrou Capucho, a equipa foi-se reajustando ao que eram as suas necessidades, era um grupo solidário, mas também muito competente. Sabíamos que quem entrasse era para dar a vida”.

Equipa 2002/03 a que melhor futebol apresentou nestes últimos anos? “Não vou por aí. Reflete a confiança que a equipa tinha, jogasse A, B ou C. Tínhamos 3 ou 4 jogadores fundamentais, tínhamos meio campo muito forte. Praticávamos bom futebol, porque tínhamos essa qualidade. Era uma equipa que trabalhava muito ao longo do jogo, com bola e sem bola. (A letra da música filhos do dragão) ajustava-se bastante ao que era a nossa forma de viver o jogo, a equipa e o grupo, que nos orgulhou a todos. Mourinho teve a capacidade de unir o grupo de trabalho e não apenas os jogadores, toda a estrutura, a envolvência foi extraordinária”.

Conquista da Liga dos Campeões em 2003/04: “Tínhamos vivido momento tão mágico com a final da Taça UEFA, quando quero um hino ao futebol olho para a final da Taça UEFA. No ano seguinte íamos confiantes, mas uma coisa é falar da UEFA e outra da Champions. Benni McCarthy vem-nos a acrescentar bastante, depois vem um jogador extraordinário que tive pena de não ver singrar de outra forma no futebol, o Carlos Alberto, isso foi um acréscimo de qualidade. O que nos alimentou foi o que se passou com o Manchester. Esse jogo para nós foi épico, também tivemos sorte no sorteio, nos adversários seguintes, mas esse jogo catapultou-nos para aquilo que foi os nossos níveis de confiança e expetativas.

Jogo em Manchester 2003/04: “Lembro-me de ver o tempo de compensação e parecia que os minutos não passavam. Lembro-me do Nuno Valente dizer: 'ainda agora chutei a bola para a frente e eles já estão aqui outra vez'. Emocionalmente fomos bastante fortes, tivemos aqui e ali a sorte do jogo, mas isso faz parte do futebol. O golo do Costinha consegui ver porque a minha imagem era mesmo central, foi mérito do Costinha, que mal a bola sai, acredita que vai saltar para ali e vai para a segunda bola, para a recarga da defesa”.

Auto-avaliação como jogador: “Eu não era um jogador excecional, era um jogador normal, tinha era uma mentalidade competitiva muito grande, e isso levava-me a superar. Quando era preciso foco, concentração e registo de grande rigor, isso era a minha praia. (…) Dificilmente me veem a desistir, sou um lutador por natureza. Enquanto jogador fazia o que adorava e agora enquanto treinador faço o mesmo”.

Chegada ao FC Porto: “No momento em que acabo contrato com o Boavista e posso escolher o meu futuro, tinha três ou quatro propostas, uma delas muito avançada. Quando apareceu o FC Porto, que era o expoente máximo de quem tinha crescido no Porto, com a sua dimensão, foi um momento crucial. Podia ter a oportunidade de escolher outro clube, e isso foi fundamental naquilo que veio a ser esse tal espírito que criámos na equipa. Uma grande capacidade de trabalho e solidariedade. Estava receoso, porque vinha do rival. Os primeiros tempos no FC Porto foram de grande desconfiança. Mandavam-me voltar ao Boavista, que era a minha casa, aqui não tinha lugar. Mas mostrei o meu caráter, que foi isso que muitos dos que chegaram fizeram. Reinventaram-se com a ajuda de um espírito forte, com renovada ambição. Revelou-se fundamental para as conquistas de 2003 e 2004. Foi mérito do Mourinho, que soube juntar as peças e retirar sempre o melhor de cada um e injetando sempre a ambição que é muito importante para um clube como o FC Porto. O objetivo era sempre o céu. Tínhamos noção do nível de exigência”.

Apresentação no FC Porto: “Lembro-me perfeitamente. Depois daquele entusiasmo em redor de mim e do Maniche, o Paulo [Ferreira] era aquilo. Uma pessoa extraordinária, da qual me orgulho bastante. Os jornalistas a quererem forçar mais alguma coisa depois do reboliço e o Paulo ali bloqueado. Lembro-me perfeitamente dessa conferência de imprensa, porque foi um momento importante. É o meu maior orgulho. O meu sonho era chegar ao FC Porto. Nasci em Angola, vim para Portugal muito cedo, radiquei-me em Rio Tinto. Desde que me conheço, o FC Porto sempre foi a minha referência. Ter o privilégio de ter jogado nos dois maiores clubes da cidade é algo que me enche de orgulho e que, neste momento, valorizo mais”.

Empate com o Belenenses na estreia: “Início da época, tudo a fervilhar… Nós vínhamos todos entusiasmados, mas não foi bem assim, trigo limpo farinha amparo. Depois tivemos uma saída complicada, ao Bessa”.

Regresso ao Bessa de azul e branco: “Estava muito fresco na memória da pessoas. Tinha saído como capitão e, como é lógico, estava tudo bem vivo nas pessoas do Boavista. Nos dérbis dessa altura, que não eram muito bem jogados, havia muita vontade e determinação. Algumas situações que ultrapassam o admissível e as pessoas têm de compreender o momento emocional de um jogador que vai enfrentar um dérbi desta natureza”.

Jogo com o Benfica: “Qualquer equipa que o seja na verdadeira aceção da palavra, supera-se nesses momentos. Ganhámos ao Benfica nas Antas, a jogar com 10, sempre importante. Foi o motor para o resto da caminhada. A partir de determinado momento sentimos que estávamos donos e senhores do campeonato e fomos alimentando muito do que tínhamos do Mourinho. Nesse contexto, acho que o Mourinho é o verdadeiro artista, no aspeto mental das equipas. Esse é o grande mérito que ele tem e uma grande valência para arte de ser treinador. Nós transformámo-nos nessa máquina de querer ganhar e conquistar. As conquistas vieram pela dedicação e qualidade dos jogadores”.

(fonte ojogo.pt)