Como consegue dormir um Homem, na noite em que perdeu o Poder?
Como pode descansar alguém que, ao fim de 42 anos, perde nas urnas de forma quase unanime, o poder que tinha e que se misturava já com o seu sangue?
Não consigo descansar nem adormecer, porque não me sai da cabeça a saída do Homem da garagem do Dragão, sozinho como saem todos os que perdem o poder que tinham.
Eu tinha cinco anos quando ele chegou a presidente, mas ele já tinha chegado ao Porto há já algumas décadas. Eu não me lembro do Porto sem JNPC e desconfio que ele já não se recordará dele mesmo, sem estar no Porto.
Como conseguiu ele dormir, ontem? O que lhe ia na alma, aquela anima de Dragão que tão bem conhecemos? Será que dormiu? Ou não lhe saiu da cabeça o que se passou no dia de ontem e o que se passou no Clube nos últimos tempos?
Saí de Lisboa, ontem às 5h30 da manhã. Desde 13 de Novembro que achava que esta direcção não podia continuar no clube e desde essa data o presidente e depois candidato só vieram reforçar mais ainda essa minha opinião. Saí de madrugada, dizia, porque não queria falhar ao meu clube. Estas eleições eram da maior importância para a sua centenária história.
Na minha opinião, ou continuávamos com JNPC e os seus apaniguados que, quais abutres, o rodeavam num caminho trilhado há uns anos em direcção ao abismo, com tiques de caciquismo ou mudávamos para um caminho desconhecido para a maioria de todos, que era um Clube sem o seu maior presidente. Como já se percebeu, votei AVB. Não por achar que é o nosso D. Sebastião, que nos vem salvar dos abutres e da desgraça financeira, mas por achar que era a única alternativa para evitar que isso mesmo nos acontecesse. Era entre o fim certo do clube ou a possibilidade (remota?) que ele ressurgisse das cinzas. AVB é essa alternativa remota.
Subi as escadas do Metro, no Dragão e fico de frente para a entrada do Museu. São nove em ponto. A fila já chega quase ao P1. Fico parado a olhar para os sócios, ainda do outro lado da rua. Sorrio, de espanto e as lágrimas enchem-me os olhos. “Estamos vivos”, pensei eu.
O grito audaz da nossa ardente voz ia ser dado! Estávamos ali para tomar rédeas do futuro do nosso clube, votássemos em quem quer que seja. O PORTO É NOSSO, dos sócios.
Subi até à entrada em frente à porta 28 a sorrir e a chorar. É esta a força que a democracia tem em mim. Chego ao cogumelo e está o dobro dos sócios à espera que as portas abrissem. Sinto um arrepio e mordo o lábio. Tanto Porto!!
Votei, sem qualquer problema e às 10 da manhã já estava na direção do Metro. Agora ia passear pela minha Invicta, cidade mãe e pai da minha biografia. Durante toda a manhã, a felicidade era o sentimento reinante. Não acreditava, ainda, que a lista B seria vencedora. Mas tinha feito a minha parte, pelo meu clube. Pelo clube do meu Pai. Mais do que isso não podia fazer. Às duas da tarde, começo a viagem de regresso a Lisboa. Queria estar descansado em casa quando se soubesse os resultados.
Quando sai, pela primeira vez, a noticia que a Lista B seria vencedora, tomei consciência do sentimento que se vinha a apoderar de mim desde que sai do Dragão.
Era o fim de uma era. JNPC ia sair do clube, deixar-nos órfãos a todos. O nosso Presidente, que fez do nosso clube uma referência europeia, ia deixar de o ser naquela noite. E não pude festejar a vitória de AVB. E, confesso, fez-me confusão, ver tanta festa na sede de Agramonte (problema meu, eu sei. Tinham todo o direito em festejar). Era um dia de festa, mas de tristeza e de um sentimento próximo do luto. Luto pelo Homem, não pelo clube. Esse prevalecerá, sempre!
A saída dele do estádio, sem que tivesse sido precavida qualquer manifestação, sem que ninguém que seguia nos carros à frente ou até atrás tivesse abandonado a viatura para dar protecção ao Presidente, que foi assim presa fácil das camaras de televisão, num momento que pedia tudo menos exposição. Quem ia ali era um Homem de 86 anos, que tinha perdido (entre outras coisas, como sabemos) a sua cadeira de sonho, ao leme do Amor que atravessa a sua vida inteira, desde infância até aos seus últimos dias.
Pensei muito durante a noite de ontem, em que pouco dormi, e no dia de hoje sobre o que se passou no clube desde 13 de Novembro e no que o Presidente disse desde aí. Dos nervos que me dava ouvi-lo perguntar se alguém tinha morrido na AGE ou que ia dar um abraço ao Madureira para ver se aplacava esta sensação de nostalgia e tristeza, sincera, pelo que aquele Homem devia estar a sentir. Não funcionou.
Ele deu-me os dias mais felizes da minha vida, logo a seguir àqueles que são mesmo os mais felizes da minha vida, porque acabamos um curso, casamos, concluímos um objectivo qualquer.
Aquele homem deu-me a final de Viena, em 1987, obra maior da sua presidência e da vida do nosso clube. 27 de Maio de 1987 jamais poderei esquecer, está gravado a letras de ouro na minha memória (como já escrevi no tópico sobre essa final) e ele foi um dos grandes obreiros dessa vitória.
Saiu, de forma democrática como é apanágio do Clube e da nossa grande cidade. Saiu derrotado por uma margem que ninguém imaginava possível. Uma diferença que a sua lista e os seus últimos mandatos mereceram, mas que o Homem não merecia. Não cometeu o pecado, visto em eleições do género, de cometer fraude eleitoral, para se perpetuar no poder sem respeito pelos sócios. Deu e demos todos uma lição de democracia, ontem.
O que vai naquela alma, Azul e Branca? Sente-se abandonado pelos seus adeptos e consócios? Sente que houve ingratidão da nossa parte, por não lhe termos dado mais quatro anos de poder? Imaginava, sequer, que pudesse perder ou os seus séquitos, sedentos de poder, disseram-lhe sempre que iam ganhar? Quão sozinho vai ficar, quando a poeira assentar? Não merece ser abandonado, pelo clube.
Hoje sinto-me órfão de presidente. O Clube tem um presidente novo, que já conhecemos e que nos deixa com água na boca sobre o que pode fazer. Mas os seus pés ainda são pequeninos, para os sapatos que tem de preencher. Tem sobre si o anátema de ter derrotado, nas urnas, por uma margem avassaladora, o Presidente mais titulado de sempre. De todo o mundo. Com isto ganha exigência máxima e tolerância mínima.
Desculpem, por este desabafo já muito longo. Mas preciso de tirar este peso que tenho no peito.
Já não podia ver JNPC, nas últimas semanas. Hoje estou ansioso por vê-lo na tribuna. Quero-o ver bem. Com a dignidade com que sempre viveu e nos presidiu durante grande parte dos últimos 42 anos.
Hoje, merece uma ovação de pé, durante largos minutos. O que nos deu não poderá (nem vai ser, certamente) apagado.
Será responsabilizado pelo que fez se, eventualmente, nos prejudicou.
Como pode dormir alguém que perdeu o poder nesta última noite?
Não sei responder. Mas sei dizer que me custou muito dormir na noite em que ajudei a tirar-lhe esse poder.
Obrigado, Jorge Nuno Pinto da Costa!
Eternamente grato pelo que nos deu.
Teremos sempre Viena!